Gisela usa drogas em todas as festas. Bala e maconha são suas favoritas. Bebe muito também. Entope-se de vodka com energético. Vira a noite. Sai de casa num sábado por volta das 23 horas e só volta no domingo de manhã. Claro que não consegue dormir. Tudo o que Gisela ingere madrugada afora é estimulante, tira o sono.
Muitas vezes, Gisela retorna para casa acompanhada. Não sei se exige preservativo dos caras. Acredito que sim. Ela não usa o feminino. De qualquer forma, sabe que corre o risco de eles não usarem e de ela não notar, haja vista o estado alterado de consciência em que costuma estar depois de ingerir uma ou mais drogas além do álcool.
Como Gisela vai a festas praticamente todos os fins de semana, tanto na cidade onde mora quanto em outras do Brasil (ela não para de viajar), a quantidade de drogas que consome por mês é considerável. Ao longo da semana, porém, trabalha, cuida da casa e, ainda que more sozinha, dá assistência à família (pais e irmãos). Não é de meu conhecimento que Gisela tenha surtos ou aja de forma irresponsável durante os chamados dias úteis.
Se Gisela, de segunda a sexta, leva uma vida comum à maioria, tem uma rotina socialmente aceitável e paga as próprias contas, isso não quer dizer que o uso constante de drogas não tenha efeito sobre ela. Gisela ainda não sabe, mas está dependente delas. O que, de início, era puro hedonismo, tornou-se dependência psicológica. A “vida real”, para ela, é somente intervalo entre uma e outra festa, uma e outra aventura, sempre regada a bebidas alcoólicas y otras cositas más.
Quando Gisela não está em uma balada, sente tédio. Sua vida loca seria fuga? Não sei. Se for, do que seria? Não me atrevo a especular. Fato é que ela não parece se dar conta de que seu paraíso é artificial. Dura apenas o tempo do efeito das substâncias que ela consome, isoladas ou combinadas. Passado esse efeito, o paraíso desaparece, e Gisela se vê novamente fora do Éden. Retorna de suas viagens angustiada e ansiosa por mais.
Cair na real é uma expressão feliz. Realmente, trata-se de uma queda. A pessoa está em outra dimensão, em um universo paralelo e, de repente, passado o efeito do que quer que tenha consumido, esborracha-se no chão duro da realidade. A recordação dos momentos de euforia consola, assim como a expectativa de nova experiência no paraíso. Entra-se em um círculo: aproximação e distanciamento da realidade nua e crua. Vive-se um vaivém.
Gisela parece, de fato, depender dessas experiências alucinantes, assim como o fumante depende do cigarro; o perdulário, das compras; o capitalista, do dinheiro.
Confesso que não a julgo moralmente. O moralismo costuma ter algo de hipócrita. Deixo de lado também o aspecto legal, pois esse merece reflexão à parte e pouco tem a ver com a análise mais de natureza psicológica que tento fazer aqui.
Pois bem, nesse comportamento de Gisela, insisto neste aspecto (além, claro, do risco de ela se tornar uma dependente química a ponto de precisar de uma clínica de reabilitação, o que, ao menos até agora, não parece ser o caso): o tipo de prazer de que Gisela goza é artificial. Se não todo, ao menos em significativa parte, ele vem de substâncias externas, artifícios. Sem isso, Gisela não viveria tão intensamente, com tanta euforia, com tamanha sensação de liberdade.
Supondo-se que as drogas deixassem de existir, Gisela provavelmente viveria com menos emoção. Nada que seja artificial dura o bastante para completar uma existência. Em algum momento, a realidade exige que o prazer venha de dentro – ou vive-se sem prazer. É como tomar analgésico para suportar uma dor. Trata-se de paliativo. A causa da dor permanece, à espera de tratamento definitivo.
Bato na mesma tecla: o paraíso a que certas drogas conduzem é artificial e pode gerar dependência. Eis onde se instala a contradição: a sensação de euforia e de plena liberdade, quando fruto de substâncias externas, pode vir a escravizar, e sua falta, deprimir.
Como pode alguém ser livre e dependente, ou seja, livre e escravo ao mesmo tempo? Pretendo voltar ao assunto depois. Aceito opiniões e depoimentos que me ajudem a entender melhor esse fenômeno.
Republicou isso em O LADO ESCURO DA LUA.