Era uma vez um idioma! Foi recente e célere seu sepultamento, porém longevo seu término. Definhou durante anos, decênios, séculos, até que se ouviu seu derradeiro suspiro. Deixa atrás de si uma linda história e belas histórias, assim como estupefatos aqueles que o julgavam imortal e uma legítima lingua franca. Mal se aperceberam estes de que foi justamente sua descontrolada expansão sua causa mortis!
O inglês deixará saudades e, obviamente, reminiscências. Seus últimos dias, no entanto, serão, por certo, os mais marcantes, inesquecíveis talvez – com o devido perdão a William Shakespeare (1564-1616), que seria quiçá o único portador de elixir capaz de salvar a vida de seu pátrio idioma.
Enfim, como olvidar o estado moribundo da língua inglesa, aqui mesmo neste Brasil varonil, quando o sincero empenho em expandi-la tornou-a, contrariamente, ainda mais debilitada? São tantos os exemplos de situações que contribuíram diretamente para seu triste desfecho! Eles vêm de todos os rincões do mundo, mas costumam manifestar-se mais amiúde em países que recebem muitos turistas, especialmente em grandes eventos, como uma Copa do Mundo.
Tomo a liberdade de relacionar alguns desses exemplos, com o inestimável apoio de amigos anglófilos que, por mera caçoada, reuniram-se comigo em torno da burlesca “Campanha pelo Fim da Língua Inglesa”. Evidente está o caráter irônico desse movimento, mediante o qual, na verdade, esperava-se – ainda que com bastante realismo – se não reabilitar ao menos prolongar a existência do idioma dos Beatles.
Ei-los, pois:
1- Beauty! — Uma das gírias do português brasileiro, empregada desde fins do século 20 até a atualidade, diz-se “beleza” quando se quer afirmar ou indagar “tudo bem”, “tudo certo”, “tudo sob controle” etc., mas em inglês só tinha mesmo o sentido de “beleza”, “boniteza”, portanto ela soaria fora de contexto para um nativo do falecido idioma inglês.
2- Fool — Como em português diz-se, na gíria, que um tolo é “pamonha”, houve vendedores de alimentos que ousaram traduzir essa iguaria de milho, a pamonha, como “fool”! (Ver foto acima, que uma amiga tirou em um restaurante*).
3- Lick-lick — Inexistente em inglês, refere-se aos antigos fotógrafos lambe-lambe em português; e o mais dispensa comentários.
4- Point of bus — Ao pé da letra, “ponto de ônibus”, típico caso em que se liqüida a versão inglesa original e correta: “bus station”.
5- Legal — Novamente, ao pé da letra, não há erro na expressão, mas se trata igualmente de tradução literal de “legal”, que, em português, pode ter tanto o sentido de conforme a Lei quanto o da gíria referente a algo agradável, prazeroso. Este último não faria sentido para um ex-falante contemporâneo da já destroçada língua inglesa. Legal em inglês (vivo até pouco tempo atrás) só tinha mesmo o sentido de algo em concordância com a Lei.
Enfim, bem antes de nós, o arguto Millôr Fernandes lançou seu primeiro “manifesto”, talvez antevendo o desfecho trágico do inglês por estas bandas: “The Cow went to the Swamp” (“A Vaca foi pro Brejo”).
A conclusão é por demasiado óbvia para o leitor (até porque já teve menção no princípio deste texto): a causa primeira, o fator deflagrador que levaria a língua inglesa à enfermidade e à morte, chama-se expansão e, com ela, um vírus letal chamado tradução literal. Eventualmente, versões precárias, mesmo que não ao pé da letra, contribuíram muitíssimo para o agravamento do quadro.
Em terras distantes, por meio do contato com nativos, habitantes de cultura diversa e falantes de outras línguas, o inglês, a princípio, parecia robustecer-se, enriquecer-se e, mesmo o contrário, a disseminar-se, a influenciar e contaminar numerosos idiomas.
A língua inglesa chegou a ser alvo de acusações como as de “dominação cultural”, “colonialismo lingüístico”, “influência perversa”, entre outras. Curiosamente, ao que parece, o camundongo engoliu a cobra. Morreu o inglês. Sucumbiu o colonizador ante seu colono. Ironia do destino?
O fenômeno – cumpre recapitular – deu-se de forma bizarra: por um lado, o inglês impunha-se como uma espécie de lingua franca, mas, por outro, afastava-se de suas origens e perdia-se em versões canhestras, às vezes incompreensíveis, quando não risíveis, para seus falantes nativos.
Em nome da comunicação, da política e da diplomacia informais, foram-se aceitando, paulatinamente, versões “locais” da língua inglesa, por mais extravagantes que parecessem, como nos exemplos acima (cinco entre centenas, somente em português!).
Em síntese, assim se deram o abatimento e conseqüente óbito do idioma inglês. Aqui jaz parte dele. Acolá, outra. Mundo afora, partículas do que um dia foi a língua-mãe de um dos maiores, se não o maior, escritor do mundo.
Réus? Condenados? São tantos que não há, neste planeta, cárceres que possam abrigá-los todos. Resta o desfecho histórico de um idioma como advertência aos que se candidatarem, garbosamente, ao posto de nova lingua franca deste mórbido planeta. Amém!
fenomenal o texto! ainda que motivado por assunto mais do que trágico. e “bread with cold” é memorável. do nível de lick lick.. espero ser chamado para o velório!
O ingles ainda é muito influente, mas não é uma língua neutra. O ideal é haver uma língua internacional neutra. Atualmente, os povos naturalmente anglófonos levam vantagem sobre outros falantes de outros idiomas.