O triste fim da língua inglesa.

Era uma vez um idioma! Foi recente e célere seu sepultamento, porém longevo seu término. Definhou durante anos, decênios, séculos, até que se ouviu seu derradeiro suspiro. Deixa atrás de si uma linda história e belas histórias, assim como estupefatos aqueles que o julgavam imortal e uma legítima lingua franca. Mal se aperceberam estes de que foi justamente sua descontrolada expansão sua causa mortis!

 

Shakespeare, o maior ícone da literatura inglesa.

William Shakespeare, maior ícone da literatura inglesa.

 

O inglês deixará saudades e, obviamente, reminiscências. Seus últimos dias, no entanto, serão, por certo, os mais marcantes, inesquecíveis talvez – com o devido perdão a William Shakespeare (1564-1616), que seria quiçá o único portador de elixir capaz de salvar a vida de seu pátrio idioma.

Enfim, como olvidar o estado moribundo da língua inglesa, aqui mesmo neste Brasil varonil, quando o sincero empenho em expandi-la tornou-a, contrariamente, ainda mais debilitada? São tantos os exemplos de situações que contribuíram diretamente para seu triste desfecho! Eles vêm de todos os rincões do mundo, mas costumam manifestar-se mais amiúde em países que recebem muitos turistas, especialmente em grandes eventos, como uma Copa do Mundo.

Torcedor na Copa do Mundo 2014.

Torcedor durante a Copa do Mundo de 2014.

 

Tomo a liberdade de relacionar alguns desses exemplos, com o inestimável apoio de amigos anglófilos que, por mera caçoada, reuniram-se comigo em torno da burlesca “Campanha pelo Fim da Língua Inglesa”. Evidente está o caráter irônico desse movimento, mediante o qual, na verdade, esperava-se – ainda que com bastante realismo – se não reabilitar ao menos prolongar a existência do idioma dos Beatles.

 

Pamonha

Imagem emprestada de uma das poderosos ativistas da “Campanha pelo Fim da Língua Inglesa”.

 

Ei-los, pois:

1-    Beauty! — Uma das gírias do português brasileiro, empregada desde fins do século 20 até a atualidade, diz-se “beleza” quando se quer afirmar ou indagar “tudo bem”, “tudo certo”, “tudo sob controle” etc., mas em inglês só tinha mesmo o sentido de “beleza”, “boniteza”, portanto ela soaria fora de contexto para um nativo do falecido idioma inglês.

2-    Fool — Como em português diz-se, na gíria, que um tolo é “pamonha”, houve vendedores de alimentos que ousaram traduzir essa iguaria de milho, a pamonha, como “fool”! (Ver foto acima, que uma amiga tirou em um restaurante*).

3-    Lick-lick — Inexistente em inglês, refere-se aos antigos fotógrafos lambe-lambe em português; e o mais dispensa comentários.

 

English_language

 

4-    Point of bus — Ao pé da letra, “ponto de ônibus”, típico caso em que se liqüida a versão inglesa original e correta: “bus station”.

5-    Legal — Novamente, ao pé da letra, não há erro na expressão, mas se trata igualmente de tradução literal de “legal”, que, em português, pode ter tanto o sentido de conforme a Lei quanto o da gíria referente a algo agradável, prazeroso. Este último não faria sentido para um ex-falante contemporâneo da já destroçada língua inglesa. Legal em inglês (vivo até pouco tempo atrás) só tinha mesmo o sentido de algo em concordância com a Lei.

Enfim, bem antes de nós, o arguto Millôr Fernandes lançou seu primeiro “manifesto”, talvez antevendo o desfecho trágico do inglês por estas bandas: “The Cow went to the Swamp” (“A Vaca foi pro Brejo”).

 

Livro_Millor

 

A conclusão é por demasiado óbvia para o leitor (até porque já teve menção no princípio deste texto): a causa primeira, o fator deflagrador que levaria a língua inglesa à enfermidade e à morte, chama-se expansão e, com ela, um vírus letal chamado tradução literal. Eventualmente, versões precárias, mesmo que não ao pé da letra, contribuíram muitíssimo para o agravamento do quadro.

Em terras distantes, por meio do contato com nativos, habitantes de cultura diversa e falantes de outras línguas, o inglês, a princípio, parecia robustecer-se, enriquecer-se e, mesmo o contrário, a disseminar-se, a influenciar e contaminar numerosos idiomas.

A língua inglesa chegou a ser alvo de acusações como as de “dominação cultural”, “colonialismo lingüístico”, “influência perversa”, entre outras. Curiosamente, ao que parece, o camundongo engoliu a cobra. Morreu o inglês. Sucumbiu o colonizador ante seu colono. Ironia do destino?

 

Fim_da_lingua_inglesa

 

O fenômeno – cumpre recapitular – deu-se de forma bizarra: por um lado, o inglês impunha-se como uma espécie de lingua franca, mas, por outro, afastava-se de suas origens e perdia-se em versões canhestras, às vezes incompreensíveis, quando não risíveis, para seus falantes nativos.

Em nome da comunicação, da política e da diplomacia informais, foram-se aceitando, paulatinamente, versões “locais” da língua inglesa, por mais extravagantes que parecessem, como nos exemplos acima (cinco entre centenas, somente em português!).

Em síntese, assim se deram o abatimento e conseqüente óbito do idioma inglês. Aqui jaz parte dele. Acolá, outra. Mundo afora, partículas do que um dia foi a língua-mãe de um dos maiores, se não o maior, escritor do mundo.

 

Frios

 

Réus? Condenados? São tantos que não há, neste planeta, cárceres que possam abrigá-los todos. Resta o desfecho histórico de um idioma como advertência aos que se candidatarem, garbosamente, ao posto de nova lingua franca deste mórbido planeta. Amém!

 

*A tradução literal e risível da palavra “pamonha” nada tem que ver com a companhia de cartão de crédito cujo símbolo aparece na foto, mas com o restaurante que aceita pagamento com essa bandeira de cartão.

Esse post foi publicado em Humor e marcado , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , . Guardar link permanente.

2 respostas para O triste fim da língua inglesa.

  1. wilson disse:

    fenomenal o texto! ainda que motivado por assunto mais do que trágico. e “bread with cold” é memorável. do nível de lick lick.. espero ser chamado para o velório!

  2. Hopkins.Serranista disse:

    O ingles ainda é muito influente, mas não é uma língua neutra. O ideal é haver uma língua internacional neutra. Atualmente, os povos naturalmente anglófonos levam vantagem sobre outros falantes de outros idiomas.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Imagem do Twitter

Você está comentando utilizando sua conta Twitter. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.