Roberto (nome fictício) e eu fomos amigos durante sete anos. Estávamos constantemente juntos. Eu gostava de dizer que Roberto era, entre todos os meus conhecidos, o que mais me dava atenção. Ele só me deixava de fora de algum programa dele em situações específicas – como quando saía para jantar com a namorada no Dia dos Namorados, para ficar em um exemplo. Há seis meses, porém, separamo-nos e, talvez, em caráter definitivo.
Tivemos uma discussão acalorada em um bar. Nós dois havíamos bebido porque era uma sexta-feira de uma dura semana para ambos e não precisaríamos dirigir para casa. O boteco ficava perto de onde moramos (somos vizinhos de bairro). Naquela noite, mesmo antes do chope, eu estava particularmente alterado. Roberto desconhecia os detalhes de uma conversa telefônica que eu acabara de ter e que me deixara completamente atordoado (questões íntimas, as quais não vêm ao caso agora).
A soma de tensão nervosa (de minha parte) e bebida alcoólica (de ambas as partes) foi como fogo em barril de pólvora. Roberto tem pavio curto, e a presença de outro amigo e da própria namorada não bastou para que se contivesse a explosão.
Discutimos e, admito, fui duro com ele. Não o acusei de nada referente a caráter (o que seria bem mais grave), mas lhe fiz críticas (entaladas na garganta havia meses) relativas à personalidade e à visão de mundo dele. Roberto, claro, não gostou. Orgulhoso, vaidoso, ofendeu-se profundamente com o que eu lhe disse à queima-roupa à mesa do bar.
“Alto”, Roberto não considerou que eu também estava emocionalmente alterado (nosso amigo em comum, também à mesa, percebeu isso em mim de imediato e chegou a comentar a respeito), tampouco levou em conta que, por eu não estar “normal”, eu “carregava nas tintas”, exagerava, maximizava posições.
Reconheço que peguei pesado no tom, mas o que eu lhe disse não justificaria o fim de uma longa e profícua amizade, sobretudo porque vínhamos da melhor fase de nossa relação: companheirismo em tempo integral e muito apoio, de minha parte, aos mais importantes projetos profissionais dele naquele momento. Eu vinha sendo seu braço direito, e tínhamos planos empolgantes e promissores para o futuro próximo. Apoiava Roberto o máximo que eu podia, e ele próprio reconhecia isso.
Pena que meu suporte profissional e, sobretudo, moral, nada tenha valido para ele diante de um típico bate-boca entre dois amigos de longa data. Ele mesmo já havia desculpado outros parceiros por erros que julgo bem mais graves que o meu. Ademais, não errei sozinho. Comentários dele provocaram minha indignação naquele momento.
A propósito, se minhas acusações tivessem sido tão graves quanto ele as julgou, a própria namorada e o melhor amigo dele teriam tomado suas dores e se voltado contra mim. Não foi, porém, o que ocorreu. Ambos mostraram-se parcimoniosos, compreensivos e não romperam relações comigo nem com ele. Parecem ter visto a briga como mero atrito entre pessoas íntimas. Já ele…
Minutos depois de termos nos despedido secamente, ele enviou-me uma mensagem agressiva, via celular, com o pedido explícito e categórico para eu nunca mais o procurar. Em seguida, excluiu-me de suas redes sociais. Fiz o que me pedi. Lá se vão mais de seis meses…
Confesso que já esperava – e acho até natural – que ele e eu passássemos alguns dias, talvez semanas, afastados. Teríamos tempo para, como diz a expressão popular, “esperar a poeira baixar”, os ânimos acalmarem-se.
Eu também compreenderia “darmos um tempo” em nossa amizade para refletirmos sobre nossas diferenças e, talvez, redimensionarmos nossa relação, de forma a evitar novos atritos semelhantes. Mas não foi o que ocorreu. Ele simplesmente trocou sete anos de cumplicidade e companheirismo por quinze minutos de um bate-boca estúpido à mesa de um boteco.
Sempre o achei hipersensível e egocêntrico e nunca escondi dele essa minha percepção. Aliás, sempre conversamos francamente sobre quase todos os defeitos que um via no outro. Dessa vez, porém, por alguma razão que ele não me explicou e não me deu a oportunidade de entender, ele ofendeu-se além do costume e abriu mão de nossa amizade de vez.
A esta altura, a leitora ou o leitor deve estar se perguntando: por que diabos este sujeito está me relatando tudo isto? Segue minha resposta, agora sim, da maneira mais objetiva (e útil) possível.
1- Tenho observado, há anos, comportamentos similares a esse do meu (ex) amigo. Muita gente tem memória de elefante para desentendimentos, mas fraquíssima para momentos de alegria e companheirismo. Em outras palavras: troca 90% de lembranças de afeição por 10% de gestos de grosseria (ou até mesmo de mal-entendidos). Isso, definitivamente, não me parece justo. Afinal, a pena (o rompimento) costuma ser maior que o delito (ofensas sem dolo, ou seja, sem premeditação, sem cálculo, sem crueldade deliberada).
2- Desculpar (mesmo delitos leves) é palavra banalizada nas bocas, canetas e teclados, mas ação ignorada na prática. Ou seja: todos defendem a reconciliação, desde que isso valha para os outros. Quando se trata de si mesmos, as mágoas falam mais alto.
3- O orgulho ferido costuma ter raízes profundas, mas, em vez de buscar apoio psicoterapêutico, a maioria de nós prefere julgar e condenar os outros como se estes fossem os únicos responsáveis pelas ofensas, e nós fôssemos sempre vítimas. Parece até que a autocrítica inexiste ou está submersa no mais recôndito do ser.
4- Com freqüência, após atritos, queima-se a etapa da negociação, da diplomacia, do diálogo enfim. Parte-se logo para o pior dos vereditos, ou seja, o rompimento ou, em casos mais extremos, a vingança.
5- O pior de um rompimento definitivo entre dois amigos não é sua explicação (as ofensas trocadas), mas a falta da chamada “segunda chance”. Se duas pessoas são amigas de fato, deve haver sempre espaço para uma nova chance – segunda, terceira, quarta. Nesse aspecto, retomo o item 1 acima: a pena não deve ser maior que o (suposto) delito. Até porque, entre amigos, raramente o erro é de um só. Via de regra, o desentendimento se dá porque ambos erraram (mesmo que um tenha errado mais).
O que realmente me chateou – e imagino que chateie a maioria de meus leitores que já passaram por situação semelhante – não foi meu amigo ter-se magoado. Esse era um direito dele, pois o ofendi (independentemente de eu avaliar se foi pouco ou muito).
O que me decepcionou foi ele ter rompido sumariamente comigo, quando ainda havia espaço para diálogo posterior. Afinal, mesmo que eu tivesse errado 100% sozinho (algo improvável), estou seguro de que eu possuía muitos “créditos” de sobra com ele para merecer ao menos uma conversa de homem para homem, a sós, para passarmos a limpo nossas diferenças, colocarmos os tais “pingos nos is”.
Por fim, que fique bem claro: tudo o que expressei neste relato vale, em meu ponto de vista, exclusivamente para desentendimentos verbais e sem dolo entre amigos. Não advogo que isso se aplique a casos mais graves, tais como violência física e mental traumatizante ou de conseqüência irreversível (tais como estupros, espancamentos e até homicídios, entre outras ações ilegais e imorais).
Mesmo quem não é religioso deve admitir que o perdão (ou a desculpa) traz vantagens psicológicas para quem o recebe e, mais ainda, para quem perdoa. Os que já abriram mão do próprio rancor sabem o quanto, depois disso, sentem-se mais leves e de bem com a própria vida. Mágoa, como se sabe, machuca tanto quem a sente quanto quem dela é alvo. Óbvio, não é? Mas por que nos esquecemos disso tantas vezes?
Psiu! Cá entre nós: não guardo mágoa profunda de meu (ex) amigo Roberto. Se ele me procurasse hoje para conversarmos e, talvez, retomarmos nossa amizade, admito que eu o receberia com boa vontade. No que dependesse de mim, conversaríamos, passaríamos a limpo nossos desentendimentos, tentaríamos eliminar os ruídos de nossa comunicação e finalmente, em bases mais sólidas e maduras, poderíamos até voltar a ser amigos.
Quer saber? Sinceramente, admitir isso, para mim, não é sinal de culpa nem de fraqueza, mas de lealdade ao que ele e eu vivemos ao longo de sete anos. No entanto, como se sabe, o amor, inclusive entre amigos, é via de mão dupla. Não basta que um só estenda a mão. São necessárias ao menos duas mãos para selar-se e manter-se a paz.