Mais de um amigo recomendou “O Poço” (“El Hoyo”, no original em espanhol). Fui conferir. Descobri um filme intrigante, que prende a atenção do começo ao fim. Trata-se de uma produção modesta, sobretudo quando comparada à média das realizações em cartaz nas principais plataformas de streaming, e isso tem seu apelo, pois o ambiente clean e a estética minimalista contribuem para o clima de mistério e suspense. Identifiquei problemas também. Mas, se apresenta falhas no varejo, “O Poço” tem qualidades no atacado, e são elas que vêm chamando a atenção, a ponto de tornar o filme um dos mais acessados na Netflix ao longo das últimas semanas.
Uma das principais qualidades de “O Poço” está em manter o clima de tensão e mistério por 1 hora e 34 minutos, duração total da película. Cumpre, portanto, sua proposta enquanto thriller. A curiosidade vai a mil. Afinal de contas, a que realmente serve o tal poço, uma prisão vertical com centenas de andares? Por que o protagonista, Gureng (Iván Massagué), opta por estar ali (em troca de um diploma apenas)? Quem construiu, controla e administra aquele estranho cárcere? Por que se serve ali, diariamente, um banquete aos detentos, se somente os que estão nas celas mais elevadas abocanham o faustoso repasto, enquanto os que estão em níveis inferiores devem se contentar com as sobras ou simplesmente com bandejas vazias? Qual é a lógica desse bizarro sistema alimentar uma vez que invisíveis carcereiros trocam mensalmente presas e presos de cela e, portanto, de andar, aparentemente de maneira aleatória?
São muitas indagações, e a maioria delas fica sem resposta — inclusive a enigmática sequência final. Em mais de uma entrevista, o diretor Galder Gaztelu-Urrutia admite que optou por deixar o desfecho de “O Poço” aberto a interpretações, embora ele tenha sua preferida (sim, o próprio realizador abre mão de um veredito). Cabe a quem assiste ir decifrando pouco a pouco o que pode estar por trás de uma trama ao mesmo tempo simples e desafiadora.
Logo nas primeiras sequências de “El Hoyo”, deduz-se o óbvio: o filme expressa uma crítica contundente ao egoísmo e ao individualismo em geral e à desigualdade social em particular. Para isso, recorre à alegoria. A prisão vertical representaria, portanto, a desequilibrada estratificação social, onde quem está no alto goza de privilégios, e quem está embaixo vive das migalhas dos mais favorecidos. Esta seria, portanto, a primeira camada de minha modesta interpretação: o presídio vertical equivaleria à sociedade de classes com suas consequências.
Abro parêntese. Claro que a desigualdade social está longe de ser exclusividade de um ou de outro regime. Em alguns, porém, ela se evidencia mais. Os contrastes entre ricos e pobres são mais acentuados no capitalismo, por exemplo. A distância entre o luxo e o lixão pode até não ser física às vezes (eventualmente luxo e lixo convivem lado a lado), mas é incomensurável do ponto de vista socioeconômico. Fecho parêntese.
Uma segunda camada interpretativa estaria, por assim dizer, em uma alegoria dentro da outra, isto é, a plataforma que transporta comida do nível zero (mais elevado) até o nível mais baixo da prisão. Ela representaria a luta pela sobrevivência dentro de um sistema cruel onde impera o princípio do “cada um por si”. Não deve ser por acaso que a versão do título “O Poço”, em inglês, é “The Platform”, que pode servir tanto para designar a prisão vertical quanto a gigantesca mesa de concreto que transporta comida de andar em andar.
Até aqui, tudo parece óbvio demais — curiosamente, a palavra “óbvio” merece destaque nos diálogos iniciais do filme, entre Goreng e seu primeiro companheiro de cela, o velho Trimagasi (Zorion Eguileor). Mas a proposta de “O Poço” não para por aí. Seria muito fácil mantê-la no nível quase mecânico, para não dizer primário ou simplório, de crítica escancarada à desigualdade social. Eis onde identifiquei outra qualidade do filme: a clara visão de que denunciar a face cruel do capitalismo não significa necessariamente defender sua antítese, o socialismo, ou qualquer outro modelo semelhante.
Assim é que “El Hoyo” mostra-se impiedoso também com propostas na linha do socialismo e do comunismo. Na prática, elas não funcionariam, e isso fica claro por meio das tentativas frustradas de implementar na prisão a “solidariedade espontânea”, ideia romântica da personagem Imoguiri (Antonia San Juan). Mais dura ainda, nesse sentido, é a metamorfose por que passa Goreng, um leitor de Don Quijote de la Mancha que acaba trocando a beleza da célebre novela de cavalaria pela brutalidade de uma faca.
O desenrolar do roteiro de David Desola e Pedro Rivero encarrega-se de ir aniquilando qualquer esperança de redenção para os personagens – e para os humanos que eles representam. [SEGUE SPOILER] Goreng, racional e humanitário no começo do filme, converte-se em um tipo emocional e sanguinolento, como de regra foram os revolucionários históricos. Sua postura equilibrada, que tantas vezes contrastou com o pragmatismo cínico do velho Trigamasi, dá lugar a um vale-tudo em nome da justiça.
Por isso, minha aposta é: a pretensão do filme está mais em evidenciar e denunciar o egoísmo e o individualismo da espécie humana do que em repisar o fracasso da aventura capitalista ou os absurdos da desigualdade social, esteja onde estiver. O preço que Gureng paga por sua solidariedade é demasiadamente elevado e pode até [SEGUE OUTRO SPOILER] significar seu próprio sacrifício. É o que sugere o diretor ao declarar, em mais de uma entrevista, que Gureng morre antes de atingir seu objetivo. O resto, isto é, o desfecho da película, seria alucinação dele (como dele, porém, se ele morreu?).
“O Poço” é manancial de chaves interpretativas. Pode-se analisá-lo sob o ponto de vista psicológico (com ênfase no perfil dos personagens e o que eles representam). Pode-se investigar a simbologia de muitos elementos presentes em cena (o livro de Cervantes, a adaga de Trigamasi, a panna cotta, a menina de traços orientais). Pode-se destrinchá-lo à luz das políticas identitárias (o homem branco europeu, o negro, o idoso, as mulheres, a menina asiática etc.). Pode-se mergulhar mais fundo na abordagem política e discutir a tensão entre dominantes e dominados. Certamente, todas essas chaves de interpretação, entre algumas outras, têm sua relevância e ajudam a compreender melhor “El Hoyo”. Mas está justamente nessa abundância de leituras algumas das falhas que identifiquei no filme.
Não quero ser exaustivo, portanto vou apontar somente os aspectos que me incomodaram mais [SEGUEM ALGUNS SPOILERS].
Se as prisioneiras e prisioneiros estão sob constante monitoramento (prova disso é o uso punitivo de termostatos: a temperatura cai ou se eleva muito quando alguém furta um alimento para comer mais tarde, por exemplo), como podem dois detentos descerem do nível 6 até os mais baixos patamares, causando tremendo alvoroço, com pancadaria e morte, sem qualquer intervenção da administração do presídio?
Essa abundância de indagações, se contribui para o clima de mistério e suspense, passa também a impressão de que roteiristas e diretor “atiraram para todo lado” por incapacidade de seguir uma proposta clara, um norte conceitual bem definido. Fica mais fácil abrir um imenso leque de interpretações do que se arriscar em uma e apostar todas as fichas nela, sujeitando-se às pesadas críticas de quem pensa diferente. O mesmo vale para o desfecho. É comum criadores depararem com uma sinuca de bico na hora de fechar a obra e simplesmente não encontrarem saída à altura do que conceberam até ali. Optam, então, por um desfecho aberto. Talvez tenha sido esse o caso de “El Hoyo”.
De qualquer maneira, o filme acaba dialogando bem com o momento atual: falta de norte. Ninguém sabe exatamente onde está e para onde vai, embora tenha alguma ideia sobre de onde veio. Neste momento de distanciamento social, em que muita gente se vê confinada em casa, “El Hoyo” de certa forma traduz essa sensação de claustrofobia, angústia, impotência, incerteza e injustiça destes tempos de COVID-19. Claro que, tal como na vida, tudo é bem mais difícil para quem está no fundo do poço. Para quem está no alto — ainda que siga em um poço — o desconforto é sempre menor, quase o mesmo de uma gripezinha.