O futuro já era!

Um dia, vivi a ilusão de que a humanidade andava para a frente. Minha ideia de futuro era a de um mundo mais liberal em termos de comportamento, mais responsável no aspecto ambiental e mais sofisticado do ponto de vista das artes. Previa que as metrópoles, inclusive no Brasil, fossem parecidas com Amsterdã, Berlim ou Nova York, ou seja, cosmopolitas, onde imperariam diversidade cultural, oportunidades, desenvolvimento de uma consciência ecológica, liberdade e certo glamour.  Ledo engano! Não é o que tenho visto, pelo menos por aqui. Bem ao contrário, aliás!

aerial architecture blue sky buildings

Foto por Lukas Kloeppel em Pexels.com

O que tenho observado em parte do mundo e no Brasil (prefiro me limitar, a partir daqui, a meu país) é, em certo sentido, um retrocesso. Seguirei por partes.

Música. O que mais faz sucesso hoje entre os jovens brasileiros? No século 20, talvez ninguém apostasse que, no 21, seriam o sertanejo (especialmente o chamado sertanejo universitário) e o funk carioca. O rock e o pop estão em segundo plano. Resistem bravamente, claro, mas não é o que a gente mais ouve nas festas. A música eletrônica tampouco chega a ser mainstream. O eletropop, muitas vezes, cede à tentação do funk e faz mixagens dos hits mais ouvidos desse gênero musical. Ignoremos a música erudita, pobrezinha! Quase não tem vez por aqui.

Talvez alguém argumente: o funk é ousado, inovador, tem letras sensuais, provocativas. Pode ser. Mas isso faz dele realmente um som ultramoderno? Sua batida nada tem de revolucionário, e a maioria de suas letras exalta um sensualismo barato que, ainda por cima, como dizem algumas feministas, “objetifica a mulher”. O funk reverbera também a violência presente, sobretudo, nas favelas das grandes cidades, convertendo miséria humana em entretenimento. Até que ponto esse ritmo contribui para a banalização da violência e do sexo é uma questão em aberto.

several people at a party

Foto por Wendy Wei em Pexels.com

Vou a festas da classe A em que o funk faz rebolar até o chão jovens que provavelmente nunca pisaram um morro apinhado de casebres e certamente só sabem da existência de balas perdidas porque, de vez em quando, ouvem falar delas nos telejornais. Se o funk conscientiza alguém? Duvido muito. No máximo, enriquece meia dúzia de compositores oriundos da extrema pobreza, mantendo na miséria a esmagadora maioria que lhes serve de inspiração. Quer algo mais conservador que isso?

Quanto ao sertanejo… Preciso mesmo me alongar? Basta resgatar suas origens: o campo, o meio rural. Nada contra. Gosto muito de fazendas, sítios, chácaras. A questão é: por que esse gênero musical, especialmente seu subgênero mais conhecido como sertanejo universitário, ganhou mentes e corações nas metrópoles? O ritmo é quase sempre lento, arrastado. As letras remetem a dores de amor. São, muitas vezes, narrativas musicadas de paixões primitivas: ciúmes, traições, vinganças. Assim como no funk, referem-se sempre a relações heterossexuais, e a representação da mulher raramente é digna de orgulho (ainda que a figura feminina geralmente apareça como alvo do desejo e da paixão masculina).

Abro parêntese aqui. Nada contra a existência em si do funk ou do sertanejo universitário. Nada contra esses gêneros terem algum espaço na cena musical brasileira (apesar das muitas restrições que tenho a eles). Nada contra pessoas que apreciam esses tipos de música. O que me chama a atenção e me incomoda é o fato de o funk e o sertanejo predominarem, serem mainstream, inclusive e principalmente nas grandes cidades, onde supostamente deveriam habitar cidadãs e cidadãos do mundo, gente mais crítica, exigente, aberta à inovação, à experimentação, à vanguarda. Isso realmente me intriga porque me iludi com a ideia de que haveria um progresso nesse sentido. Esperava uma trilha sonora bem diferente para as metrópoles do século 21. Fecho parêntese.

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La Maja Desnuda, Francisco Goya (1746-1828).

Artes plásticas.  A “caretice” também atingiu as artes plásticas no Brasil. Acertou-as em cheio de duas formas: censura à irreverência e louvor à banalidade. No caso da repressão à ousadia, fico aqui pensando: como seria recebida hoje a célebre pintura “La Maja Desnuda”, do espanhol Francisco Goya (1746-1828)? Baseado em noticiário recente sobre a reação de expressiva parte da sociedade brasileira a certas manifestações de arte contemporânea, estou seguro de que, nas redes sociais, abundariam impropérios contra a obra de Goya. Muitos diriam que o artista desperdiçou seu talento com pornografia. A pintura, do fim do século 18, está entre as obras primas da arte espanhola e ocupa lugar de destaque no famoso Museu do Prado, em Madri. Hoje, ao menos no Brasil, renderia polêmicas e indignação semelhante à dos inquisidores espanhóis que quase deram cabo de Goya por sua audácia.

No que diz respeito à valorização da banalidade, suficiente é citar o retumbante êxito de mercado do brasileiro Romero Britto. A despeito da defesa que alguns ainda fazem dele, parece-me óbvio que ele está mais para artista gráfico do que para artista plástico. Tem seu valor como autor de desenhos alegres, coloridos, de fácil absorção e reprodução, mas dificilmente conquistará a crítica especializada e colecionadores de arte mais exigentes, connoisseurs, habituados a uma produção intelectualmente mais sofisticada e original. A obra de Britto está para as artes plásticas mais ou menos como os gibis da Turma da Mônica estão para a literatura.

Comportamento. Abordo agora o aspecto dos costumes. Se, nas artes, a vanguarda está praticamente escondida em galerias e museus de visitação restrita a uma elite intelectualizada, no âmbito do comportamento, ela parece ainda mais distante. Talvez soe equivocado dizer isso quando um passeio pelos Jardins, em São Paulo, ou uma novela das nove na Globo me desmente com a presença desinibida de casais gays, mulheres emancipadas, negras e negros em postos de comando (assim mesmo, com frequência limitada). Acontece que isso se restringe a parcela da sociedade brasileira. Uma minoria corajosa (ou que tem condições para isso) se manifesta, se expõe, se permite ser ela mesma e realizar seu potencial. A maioria se esconde, tem medo, é alvo de agressões e, não raramente, busca refúgio no isolamento, na hipocrisia ou no autoengano. Há mesmo quem cometa suicídio por ser como é.

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Foto por Brett Sayles em Pexels.com

Fora do showbiz e das avenidas e shopping centers das megalópoles, ainda sofrem de preconceito e discriminação milhares de LGBTI, mulheres (sobretudo negras e pobres), pessoas “de cor”, entre outros grupos. Muita gente se poda, deixa de viver um amor por medo, interrompe uma carreira por baixa autoestima, abandona os estudos por se sentir “peixe fora d’água” ou sofrer bullying no ambiente escolar. Posso ir mais longe e lembrar os crimes contra esses e outros segmentos populacionais.

A intolerância à diversidade entrou século 21 adentro. Nem mesmo a indiferença ao diferente predomina. O desprezo pelo diverso de si ainda impera num mundo tecnologicamente avançado e sempre avançando. Reina o contraste entre uma mentalidade medieval e um ambiente às vezes semelhante a uma ficção científica.

Peles tatuadas, piercings, cabelos arrepiados, pernas e peitos nus em público, sexo livre entre adolescentes e jovens, preservativos e contraceptivos de fácil acesso, drogas sintéticas e semi-sintéticas em abundância, nada disso representa uma sociedade verdadeiramente avançada, vanguardista, libertária, “cabeça aberta”.  De perto, a maioria é “careta”. Ao menos é o que concluo de minha própria experiência. Convivo com jovens, adultos, idosos. Mesmo os que estão na faixa dos 20 aos 30 anos de idade parecem mais inclinados a valores e escolhas tradicionais. Não por acaso, elegem governantes que defendem esses mesmos princípios e opções.

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Foto por Irina Kostenich em Pexels.com

Meio ambiente. Quando se trata de consciência ambiental, confesso que também esperava mais avanços no século 21. Apesar do heroísmo dos que promovem campanhas pelo fim do uso excessivo do plástico e lutam pela sobrevivência da fauna em risco de extinção; a despeito do aumento da exploração de fontes alternativas de energia e do estímulo ao uso de bicicletas, entre outras iniciativas admiráveis, inclusive por parte de governos de muitos países; noto que o colapso do meio ambiente segue mais rápido.

No plano individual, por assim dizer, observo o antitabagismo recuando no Brasil, a se crer na quantidade de jovens que fumam, muito mais elevada que a da geração imediatamente anterior. Admito que não disponho de dados, mas acho improvável minha observação estar muito distante da realidade.

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Foto por XU CHEN em Pexels.com

Moro em Brasília. A capital modernista, a cidade de arquitetura irreverente, a sede do poder do maior país da América Latina abriga ávidos concurseiros e privilegiados concursados, promissores comerciantes e ricos proprietários, novos e velhos políticos, gente que sua e gente que suga, quase todos comprometidos com um Brazilian way of life que em nada lembra a promessa dos ousados movimentos estéticos de vanguarda, dos “poetas malditos”, dos aristocratas da Belle Époque, dos modernistas da Semana de 22, dos hippies e beatniks, dos pioneiros do rock, dos clubbers, dos góticos, dos ecologistas, dos caras-pintadas.

Foi ilusão minha achar que o Brasil estaria mais livre, leve e solto no século 21. Como em diversas partes do mundo, parece ter voltado no tempo. É quase certo, aliás, que partirei desta para melhor sem ver minha cidade tão cosmopolita quanto uma Amsterdã, uma Berlim, uma Nova York. Quem sabe em outra encarnação?…

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

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