De fato e de ficção.

Assisti a toda a primeira temporada de “O Mecanismo”. Tenho acompanhado a polêmica em torno da série em cartaz na Netflix. Li o artigo do diretor José Padilha na Folha de S. Paulo deste domingo 1º de abril e alguns de seus comentários salpicados, aqui e ali, ao longo da semana passada. Que tiro foi esse? Quanta mixórdia!

 

 

Vou começar pelo fato mais recente dessa barafunda: o artigo do diretor José Padilha, intitulado “O mecanismo agradece”. Já sei que alguns vāo me apedrejar pelo que vou dizer agora, mas não me importo. Concordo com quase tudo o que Padilha afirma no texto dele na Folha. A tese que ele defende faz sentido, tem fundamento.

No entanto, apesar de concordar com a essência do que expressa Padilha em seu artigo, penso que ele, surpreendentemente, confunde realidade e ficção nesse caso. No texto, ele defende seu ponto de vista sobre uma realidade, isto é, o que a Lava Jato representa dentro de um contexto de roubalheira generalizada no mundo da política. Só que expressiva parte das críticas — possivelmente as mais relevantes — à série não ataca a realidade que ele descreve, tampouco a tese que ele defende. Elas vão contra a ficção que ele fez a partir dessa realidade e dessa tese. Não precisa ser de esquerda para enxergar, no mínimo, certo desleixo em “O Mecanismo”.

 

omecanismo

 

Para não me alongar muito, vou me deter em apenas duas características, ao comentar a série de Padilha: elenco e roteiro. Vou deixar de fora cenografia e fotografia, que também me incomodam em várias sequências, entre outros aspectos.

Com exceção de Selton Mello (no papel do delegado da Polícia Federal Marco Ruffo), Carol Abbas (como a delegada da PF Verena Cardoni), Enrique Días (na pele de Roberto Ibrahim) e Leonardo Medeiros (interpretando João Pedro Rangel), o elenco de “O Mecanismo” deixa muito, mas muito a desejar.

O Brasil ostenta atores e atrizes de alto nível para encarnar qualquer um dos personagens da trama, mas — sabe-se lá por quê — coube a uma segunda divisão da classe artística brasileira papeis-chave, como o da presidente candidata à reeleição, Janete Ruscov (Sura Berditchevsky), e de seu vice, Samuel Thames (Tonio Carvalho), entre outros tantos. Até o papel do juiz Paulo Rigo (versão ficcional do célebre juiz Sergio Moro), figura central na história, tem como intérprete um robótico Otto Jr.

Não adianta dizer que essas figuras são secundárias no dia-a-dia da trama porque, para isso, existem as chamadas “participações especiais”, que as televisões exploram tão bem quando precisam valorizar um personagem e homenagear um ator ou atriz de primeira grandeza cujo papel, em termos de tempo e espaço, vai ser curto na história. A própria Netflix, que produz a série e a leva ao ar, não costuma fazer economia na seleção do elenco de suas produções, quase sempre multimilionárias.

 

House_of_cards

 

Quanto ao roteiro, gosto de compará-lo ao de outras séries com viés político, como “House of Cards” e “Narcos” (da primeira e da segunda temporadas). Além de ter investido em elenco, figurino e fotografia, “House of Cards” capricha nos diálogos (o cinismo do protagonista Frank Underwood é um de seus pontos fortes) e, sobretudo, na sofisticada costura do golpe que o vice Underwood aplica contra o titular da Casa Branca (foco da primeira temporada).

“Narcos” aposta na ação, eletrizante do começo ao fim. Mesmo que se conteste, aqui e ali, a fidelidade aos fatos, a perseguição ao traficante Pablo Escobar e seu cartel vale por si mesma. Escobar (papel de Wagner Moura) é um protagonista digno desse nome. Conduz toda a trama. É personagem rico. Ainda que nāo tivesse existido, seria interessante. A “caçada” só tem sentido e excita tanto porque é contra um tipo como ele.

“O Mecanismo” não tem a ironia fina de “House of Cards”, nem a tensão dramática e mesmo trágica de “Narcos”, tampouco protagonistas instigantes e cativantes como Frank Underwood e Pablo Escobar. Sem atores e atrizes de primeira linha, sem diálogos de impacto (dá para imaginar algum deles virando “meme”, como os de Frank Underwood?), sem uma mente criminosa brilhante em torno da qual gire a trama, resta uma tese, aquela mesma que Padilha explica em seu artigo. Mas uma tese segura uma narrativa? Na TV? Na fantástica Hollywood contemporânea chamada Netflix?

Eis o problema. A questão ideológica vem depois, bem depois. Se uma série de viés político convence porque ação e reflexão caminham de mãos dadas e puxam as de quem está diante da TV (inclusive a crítica), as supostas intenções de manipular a opinião pública seguem seu caminho para o departamento da Ética e da Política, não da Estética (e me permito aqui separar as três). A obra ficcional tem, antes de tudo, um compromisso estético. As questões moral e política pesam, mas não definem a arte. A qualidade dela passa antes por valores estéticos, que “O Mecanismo” definitivamente fica devendo.

 

Narcos

 

Sei que muita gente está gostando de “O Mecanismo”. Há quem goste porque esteja salivando ao ver expostas as entranhas de um esquema de corrupção que tanto asco provoca país afora, e isso se chama catarse. Há quem goste porque se delicia ao ver ícones do Partido dos Trabalhadores apresentados de maneira desabonadora e vexaminosa, e isso se chama revanche. Há quem goste porque acredita estar finalmente entendendo direito a complexa Operação Lava Jato, e isso vem a ser ilusão (ao menos até certo ponto), pois a série pisoteia os fatos aqui e acolá. Só acho improvável que muita gente goste de “O Mecanismo” por suas qualidades estéticas — e, com isso, não quero dizer que os motivos acima para gostar da série não sejam legítimos, porque o são. No entanto, valem esteticamente tão pouco quanto os argumentos dos incomodados com a trama a ponto de cancelarem a assinatura da Netflix.

Meus motivos para nāo ter morrido de amores por “O Mecanismo”, até agora, espero ter deixado claros neste artigo. Reforço de que se trata, para mim, de uma questão estética e nāo ética ou política. O farto material da Operação Lava Jato, com tanta peripécia envolvida, já levou a própria Netflix a manifestar, em peça de publicidade para “House of Cards”, que a trama ficcional de Frank Underwood não tinha como competir com a trama real da Lava Jato no Brasil. E agora? Como explicar que “House of Cards” supere, em termos de teledramaturgia, “O Mecanismo”? É com esse tipo de indagação que Padilha deveria estar realmente preocupado e não com a reação negativa de quem se baseia mais em ideologia que em qualidade estética.

 

 

 

 

 

 

 

 

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