Qual seria o resultado de uma pesquisa que perguntasse a milhares de pessoas se elas se acham humildes? Problema! Aquelas que se dissessem humildes poderiam ser consideradas humildes? Afinal, quem é humilde pode afirmar (e afirma) que é?
Antes de tentar responder às questões acima, há outra, bem mais importante, que a precede: o que, afinal, é humildade? No Aurélio: “Virtude que nos dá o sentimento de nossa fraqueza”. Também é modéstia, pobreza, respeito, reverência, submissão. No Dicionário de Filosofia, de Nicola Abbagnano: “Atitude de abjeção voluntária, típica da religiosidade medieval, sugerida pela crença na natureza miserável e pecaminosa do homem.” Nesse sentido, diz ele, a humildade era desconhecida do mundo antigo.
Em seu dicionário, Abbagnano resume as diferentes visões sobre a humildade. Os filósofos cristãos — talvez fosse melhor dizer os cristãos filósofos… — veem nela uma virtude. Curiosamente, foi essa visão que prevaleceu, pelo menos no Brasil, posto que é a mais comum, tal como o próprio verbete do Aurélio o comprova. Já os filósofos não-cristãos que Abbagnano cita desconfiam da humildade. Mesmo Espinosa, um religioso, “negava que a humildade fosse uma virtude e julgava-a uma emoção passiva por nascer do fato de ‘o homem contemplar sua própria impotência’.” Para ele, só haveria virtude se esse pensamento de impotência se manifestasse em relação a um ser superior.

Immanuel Kant (1724-1804): humildade moral e humildade espúria.
Kant aborda o tema de maneira semelhante, de acordo com o dicionário de Abbagnano. Haveria, para o filósofo alemão, a humildade moral — “sentimento da pequenez do nosso valor, comparado com a lei” — e a humildade espúria — “a pretensão de, por meio da renúncia, adquirir algum valor moral, valor moral oculto”. Nietzsche, por sua vez, via na humildade um aspecto da “moral dos escravos”.
Tudo isso dá pano para manga! Eis por que o assunto me instiga. O senso comum empurra a gente para uma visão limitada de humildade. Humilde é quem se mostra discreto, contido, respeitoso, modesto. Não se exibe. Não se vangloria. Não incomoda.
Uma reflexão mais profunda, porém, permite que venham à luz visões diferentes de humildade, como sintetiza Abbagnano. A humildade pode ser uma máscara, um subterfúgio, um problema de autoestima, um traço de submissão, entre outras possibilidades. Nesses casos, não seria uma virtude. Nada haveria de nobre, de eticamente superior em ser humilde. Então me lembro da máxima do moralista francês François de la Rochefoucauld, para quem “a humildade é a maior das pretensões”.

François de la Rochefoucauld (1613-1680): ceticismo quanto à humildade.
De volta à hipótese do primeiro parágrafo deste artigo, acredito que a maioria das pessoas entrevistadas na pesquisa responderiam que se julgam humildes. Talvez titubeassem antes de responder, mas acabariam por afirmar que, sim, são humildes. Nesse caso, não estariam sendo humildes e, pior, talvez evidenciassem o estado de negação que leva tanta gente a julgar-se moralmente melhor do que realmente é.
Não sou filósofo. Não passo de um bacharel em Filosofia. No entanto, permito-me ter minha própria visão de humildade. Para mim, trata-se da capacidade de a pessoa ver-se a si mesma com realismo, baseando-se tanto em sua própria autoimagem quanto na imagem que o mundo tem dela. Não sou apenas o que acho que sou, mas também a impressão que transmito àqueles com quem interajo. O espelho não basta. Ele é suspeito. Preciso também dos olhos, ouvidos e bocas a minha volta. O contrário também funciona: o que o mundo acha de mim não basta, pois ele é suspeito. Pode me aplaudir ou me vaiar injustamente. Necessito, portanto, de meu espelho para equilibrar o jogo. Se ambos falharem, caio na vala comum da ilusão, do autoengano.
Humilde é a criatura que, neste mundo agitado e insano, consegue ter autoestima sem se achar o último biscoito do pacote e, ao mesmo tempo, ter autocrítica sem se julgar o pior dos mortais. Equilíbrio e bom senso me parecem juízes bastante confiáveis. Difícil? Irreal? Impossível? Não sei. Não sou. Para fins teóricos, pelo menos, fica aí minha modesta visão. Críticas e perspectivas diferentes são bem-vindas.
Um ótimo relato sobre a humildade.
Gosto de ver várias percepções de um assunto porque nos dá uma possibilidade de nos vermos em determinado contexto.
Eu particularmente não me acho humilde porque ainda não adotei completamente o silêncio quando me sinto atacada e até mesmo acho que ficar em silêncio não é prova de humildade.
Acho que ser humilde é nem se sentir atacada com as insinuações do outro…é não se importar, é não levar a vida muito a sério.
Como não cheguei aí, não me sinto humilde.
Essa é uma questão difícil mesmo. Por isso, quis abordá-la. No seu caso, fiquei pensando comigo mesmo: no início e no fim do texto, afirmo que uma pessoa que se diz humilde não pode se considerar humilde. Agora pondero: e a que não se julga humilde? Seguindo a mesma linha de raciocínio, essa pessoa seria humilde por admitir não o ser. Portanto, você seria humilde, sim, por não se considerar como tal. Na verdade, vejo graus, níveis em tudo. Talvez você não seja humilde o tempo todo ou em todos os aspectos, mas o seja em diversas ocasiões e em alguns aspectos. Grato por seu comentário. Beijos.