Diego parou. Ficou ali, estático, por alguns segundos. Segurou com força a maçaneta e respirou profundamente antes de girá-la devagar. Deu um modesto passo adiante.
– Com licença. Bom dia.
– Bom dia. Sente-se, por favor.
— Obrigado.
– Como você está se sentindo, Diego?
– Um pouco tenso.
– Por quê?
– Não sei. Deve ser porque nunca estive em um consultório como este.
– Talvez, mas saiba que você não tem motivo para ficar tenso.
– Sim. Sim. É verdade.

Melancolia (1894), de Edvard Munch (1863-1944).
Ele falava lentamente e não olhava para mim. Seus olhos procuravam um ponto para se fixar. Vasculharam a sala e descobriram minha poltrona, os quadros abstratos nas paredes, o tapete no centro, o abajur à minha esquerda, a cortina fechada. Pararam na pintura atrás da minha cabeça.
– Aprecia o Cubismo?
– Acho que sim. Depende.
– De quê?
– Da pintura.
– Desta, atrás de mim, você gosta?
– Sim. Acho que sim.

Arlequim (1918), de Pablo Picasso (1881-1973).
As mãos dele apertavam os braços da poltrona. Ele não olhava para mim. Evitava meu olhar. De repente, cruzou uma perna sobre a outra. Descruzou-a segundos depois.
– Não sei por que estou aqui.
– Você veio espontaneamente?
– Sim.
– Por que eu?
– Como assim?
– Por que você me escolheu entre tantos profissionais na cidade?
– Uma amiga indicou você. Ela me disse que um tio dela já veio aqui e gostou muito.
– Por que sua amiga achou que você poderia gostar de mim também?
– Ela me disse que o tio é uma pessoa exigente. Se ele gostou de você, do seu trabalho, eu também poderia gostar.
– E você é exigente?
– Não sei. Acho que sou.
– O que você disse a sua amiga para ela sugerir que você viesse até aqui?
– Bem… É muito íntimo.
– Imagino que sim. Mas aqui é um espaço para você se abrir quando quiser, o quanto quiser, como quiser. Dentro de certa medida, é claro.
– Entendo…
– Então…
– É que tenho um pouco de vergonha de falar sobre isso. Essa minha amiga é a única pessoa com quem tive coragem de me abrir, quer dizer, ela não ficou sabendo de tudo, só de um pouco. Confio nela, mas…
– Mas?
– Já disse. É algo muito íntimo.
– Íntimo e incômodo. Correto?
– Correto.
– Incômodo por quê?
– Porque…
– …
– Porque me perturba.
– De que forma isso perturba você?
– Penso nisso e acabo ficando deprimido.
– Pensar nisso é inevitável?
– Às vezes, é.
– Quando é evitável? Quando você consegue ficar sem pensar nisso?
– Sei lá! Quando saio e me divirto. Quando vou ao cinema e gosto do filme, por exemplo.
– E quando você não consegue evitar?
– Geralmente, quando vou me deitar.
– Você perde o sono?
– Na maioria das vezes, sim.

Melancolia (1892), de Edvard Munch.
Diego estava de novo à procura de um ponto fixo para mirar. Escolheu o frigobar próximo à janela. Por segundos, mostrou-se distante, ausente.
– Você se incomoda de me dizer em que você pensa antes de dormir a ponto de fazer você perder o sono? Deve ser algo importante. Talvez eu possa ajudá-lo a se livrar desse pesadelo acordado.
– Perdão. Eu sei que você só quer me ajudar. Fui eu que procurei você. Mas eu tenho vergonha, entende? É algo muito íntimo. Nunca revelei isso antes.
– Nem mesmo para essa amiga que me indicou para você?
– Não. Ela apenas desconfia. Só me abri com ela um pouco.
– O que você disse a ela? Pode me revelar ou falar sobre isso realmente perturba você? Não quero forçá-lo a nada. Meu objetivo é só ajudá-lo. Você me procurou. Gostaria de poder fazer algo por você.
– Eu sei. Eu sei.
– Tudo bem. Sobre o que você quer conversar?
– Eu acho que…
– …
– Acho que tenho um problema.
– Problema?
– Sim. Tenho um problema.
– Um deles eu já conheço: você tem dificuldade para dormir às vezes…
– Você tem bom humor.
– É preciso.
– Eu gostaria de ter mais humor, mas não consigo. Sou muito fechado.
– Por quê?
– Acho que tenho medo de as outras pessoas me conhecerem melhor.
– Entendo…
– Tenho vergonha, sabe?
– De que exatamente?
– Da minha diferença.
– Qual diferença? Ninguém é igual a ninguém, Diego. Todos nós temos diferenças. Qual é o problema em ser diferente? Diferente de quem?
– Eu sou diferente. Sou diferente da maioria de meus amigos.
– Como você pode ter tanta certeza disso? Da mesma forma que você não se abre com seus amigos, talvez eles também não se abram com você.
– Acho pouco provável.
– O que você acha pouco provável?
– Que meus amigos…. Deixa pra lá!
– Em que exatamente você se sente diferente dos seus amigos?
– Eles…. Eu…. Bem, eles…
– …
– Eles gostam de mulher, só de mulher. Pronto! Consegui dizer isso! Meu Deus!
– Está se sentindo melhor agora?
– Mais ou menos.

Desespero (1892), de Edvard Munch.
A expressão no rosto dele era de alívio, mas seu olhar continuava a fugir do meu. Diego ainda via em mim uma ameaça, como se ele fosse uma criatura indefesa diante de um animal selvagem. Eu era a fera.
– Você está me dizendo que seus amigos gostam só de mulher. E você é diferente deles por quê? Você não gosta só de mulher?
– Não. Eu sinto atração por homens também. Mas eu não sou gay, entende? Eu não sou gay! Eu sou diferente dos meus amigos em pensamento, só em pensamento.
– Certo…. Você sente atração por homens, atração sexual…
– Acho que é sexual. Não sei.
– Que tipo de atração você sente pelos homens?
– Bem…. Eu sinto vontade de… tocar o corpo deles…
– Você já fez isso?
– Claro que não! Eu já disse: eu não sou gay.
– Diego, você se sente perturbado porque sente atração por homens. É isso?
– Sim. Isso me incomoda muito.
– Por quê?
– Porque acho isso errado. Eu não deveria sentir atração por homens, só por mulheres. O normal é um homem se sentir atraído por mulheres, não por homens. Deus fez o homem e a mulher para que um complete o outro, para um ser parceiro do outro. A natureza fez o homem e a mulher sob medida um para o outro. É contra a lei divina e contra a lei da natureza um homem sentir atração por outro homem, e uma mulher, por outra mulher.
– Quem disse isso?

Adão e Eva (Slovenian Beehive Paintings).
– É assim. Faz parte da nossa natureza.
– Então, Diego, por que é que tantas pessoas, milhares, milhões, sentem atração sexual por outras do mesmo sexo? Todas elas são anormais?
– Sim. Todas elas são anormais. São doentes.
– E você se considera doente?
– Mais ou menos.
– Como assim?
– Vou dar um exemplo. Uma pessoa descobre um tumor. Faz exames. O tumor é benigno. Ela extrai o tumor. Está curada.
– Com isso, você quer dizer que a atração homossexual é uma espécie de tumor?
– Exatamente.
– Então, se uma pessoa descobre em tempo que tem esse… tumor, ela pode se curar?
– Isso mesmo.
– Você acha, então, que a atração sexual é algo do qual você pode se livrar se quiser?
– Sim. Se eu tiver ajuda médica. Por isso, estou aqui.
– Parabéns.
– Parabéns por quê?
– Você acaba de me dizer, finalmente, por que você me procurou.
– É verdade. Eu disse. Nem tinha percebido.
– Muito bem, mas há um probleminha.
– Qual?
– Eu não acredito em cura para a homossexualidade.
– Mas aí é que está! Eu não sou homossexual. Ainda não. Portanto, dá tempo de você me curar, quer dizer, de evitar que esse tumor cresça dentro de mim.

Pity the Blind, de Klaas Koster (1952).
– Diego, preciso deixar claro o seguinte: meu papel não é curar as pessoas de males que elas acham que têm. Meu papel é ajudar pessoas a se autoconhecerem e, assim, encontrar caminhos novos, soluções novas, para situações que as incomodam. Muitas vezes, meu trabalho é ajudar as pessoas a simplesmente se aceitarem como são.
– E quando as pessoas querem mudar?
– Elas precisam, antes, ter certeza disso.
– Eu tenho certeza.
– Elas também precisam ter certeza de que têm um problema.
– Eu tenho essa certeza.
– OK. O que leva você a estar tão convicto de que sua atração por outros homens é um mal e que esse mal pode ser eliminado?
– Eu já disse: Deus e a natureza.
– Certo. Você acredita que Deus fez a natureza?
– Sim. Deus é o criador de tudo. A natureza é obra de Deus.
– Se Deus criou tudo, ele criou todos os seres humanos. Correto?
– Exato.
– Todos, sem exceção?
– Todos. Sem exceção.
– Deus é perfeito?
– Sim. Claro!
– Por que, então, Deus teria criado homens que só sentem atração sexual por mulheres e homens que também sentem atração por outros homens?
– Esse é um erro do homem, não de Deus. Deus fez o homem a sua imagem e semelhança. Mas Deus concedeu ao homem o livre arbítrio. Por isso, o homem pode ser mau. Da mesma forma, o homem pode sentir atração por outro homem. Mas isso vai contra a lei de Deus, a lei do Criador.
– Compreendo. Então, na sua opinião, a homossexualidade é uma infração, pois contraria a lei divina? Para você, ser homossexual é tão grave quanto fazer o mal?

Deus Julgando Adão (1795), de William Blake (1757-1827).
– Acho que sim.
– Acha?
– Posso me explicar melhor. Há infrações mais graves que outras. A homossexualidade é uma infração bem menos grave, por exemplo, que o assassinato. Mas, ainda assim, é uma contravenção, um desrespeito à lei de Deus, que criou o homem para a mulher, e a mulher para o homem.
– Você acredita, então, que a homossexualidade é uma opção? Assim como um homem pode escolher ser um assassino, ele pode escolher ser homossexual?
– Exatamente.
– Você acha que a vida de um homossexual é fácil? Ela é mais fácil, por exemplo, que a de um heterossexual?
– De jeito nenhum!
– Então, por que um homem ou uma mulher escolheria levar uma vida mais difícil?
– Compulsão. Descontrole. Algo assim.
– Se o desejo é tão forte que a pessoa não consegue controlá-lo, você acha que, ainda assim, essa pessoa tem opção?
– Acho. Muitas vezes, uma pessoa sente tanta raiva que tem vontade de matar. Mas, se ela souber se controlar, ela não vai matar. O mesmo vale para o sexo. É preciso ter controle.
– Controle ou repressão?
– Controle.
– O que faz você pensar que a homossexualidade é algo ruim? Quem o homossexual está prejudicando? A quem ele está fazendo mal?
– A si mesmo.
– Por quê? Você não acredita que haja homossexuais felizes?
– Não. Não acredito. Muitos deles até se suicidam.
– Pois eu conheço muitos homossexuais felizes. Posso garantir isso a você.
– Se você está dizendo…
– Sim. É verdade. Conheço homossexuais felizes. Assim como há heterossexuais infelizes, que chegam a se suicidar.
– Pelo jeito, você é a favor da homossexualidade.
– Não sou contra nem a favor. Sou, sim, a favor de as pessoas viverem sua sexualidade livremente, sem medo, sem culpa, sem repressão, desde, claro, que não prejudiquem as outras nem a si mesmas.
– Mesmo sabendo que elas estão contrariando uma lei divina?
– Lei divina? Onde está essa lei?
– Nas Sagradas Escrituras.
– Como você pode ter certeza de que as escrituras sagradas são totalmente fiéis à palavra dos chamados profetas? Ao longo de séculos, elas receberam diferentes traduções, assim como alterações, intervenções, até adulterações mesmo.
– Isso é heresia.
– Não. Isso é História, Diego. As sagradas escrituras são um documento histórico. Como todo documento histórico, elas merecem uma análise cuidadosa. Com todo o respeito que eu tenho por todos os escritos religiosos de todos os tempos e crenças, acredito que qualquer documento está sujeito a modificações ao longo da História. Nenhuma narração é totalmente fiel aos fatos. Bem, isso é outra discussão, bastante longa por sinal.
– De fato. Eu teria diversos argumentos para apresentar a esse respeito, mas acho que seria desviar do assunto.
– Tem razão. Na verdade, já nos desviamos um pouco. Não faz mal. Esses desvios fazem parte do nosso trabalho aqui. Podem até ser úteis na terapia às vezes.
– O problema é que você dificilmente vai me convencer de que o homossexualismo não é um erro, um desvio, uma aberração, sei lá.
– Meu papel não é convencer você, nem ninguém, Diego. Meu papel é ajudar você a expor suas ideias, seus sentimentos e enxergá-los mais de perto. É você quem decide o caminho que pretende tomar.
– Mas eu já decidi meu caminho. Eu quero extrair esse tumor de dentro de mim enquanto é tempo. Não sou gay, não quero ser gay.
Diego consumiu vários minutos detalhando e reforçando os mesmos argumentos. Dava a impressão de querer se convencer de todos eles.
– OK. Nossa sessão termina agora. Mas na próxima – espero que haja a próxima – gostaria de retomar nossa conversa deste ponto: a possível origem da homossexualidade.
– Está bem. Vou pensar no que conversamos hoje. Talvez eu volte.
– Combinado.
– Tchau. Obrigado!
– De nada. Tchau.
Diego não voltou.