Quem nunca ouviu dizer que “toda brincadeira tem um fundo de verdade”? Pelo menos dois amigos meus acreditam piamente nisso. Confesso que tenho minhas dúvidas. O problema, para mim, está no “toda”. Eu mesmo vivo brincando sem ter com isso uma segunda intenção. Ainda assim, concedo aos dois (e aos demais que pensam da mesma forma) o benefício da dúvida. Será que estão mesmo certos?
Não nego que faço algumas brincadeiras com segundas intenções e ouço várias que me parecem indiretas em forma de zoação. Mas seriam realmente todas assim? Todas mesmo? É sempre possível recorrer ao conceito de inconsciente. Contra ele, a luta é praticamente vã. Posso admitir, então, que ao menos inconscientemente toda brincadeira tem um fundo de verdade? Vale a pena pensar melhor sobre isso. Afinal, posso apostar que a gente não passa um dia sem ouvir ou fazer no mínimo uma brincadeira (excetuando-se, claro, quem está de luto recente ou atravessando um momento muito difícil na vida).
Vou dar um exemplo de brincadeira gratuita que talvez enfraqueça o argumento de que todas têm fundo de verdade. Gosto de apelidar pessoas. Um amigo ganhou um apelido porque seu primeiro nome é o mesmo de um antigo personagem da TV americana. Nesse caso, o tal fundo de verdade seria o fato de haver realmente um personagem com o mesmo nome de meu amigo? Não creio que seja esse o sentido de “fundo de verdade”.
Quem acredita que toda brincadeira carrega algo de verdadeiro parece entender “fundo de verdade” como segunda intenção ou recado disfarçado em forma de chiste. O apelido que dei a meu amigo nada tem de segunda intenção nem de recado dissimulado. É uma brincadeira despretensiosa. Não há, de minha parte, nenhuma malícia. O mesmo posso dizer de outros apelidos engraçadinhos que distribuo por aí. Associá-los a mensagens ocultas seria uma “viagem”, da mesma família das teorias conspiratórias.
De fato, há brincadeiras que carregam em si uma ou mais indiretas. Chegam a ser recursos comuns, principalmente para quem deseja evitar atritos. Assim, em vez de dizer a Joana que a acho fútil, prefiro contar uma piada sobre uma perua chamada Joana. No contexto, deixo claro que sempre me lembro dela quando ouço a piada. Em seguida, evito o constrangimento com a afirmação de que “foi só brincadeirinha”. Posso ir mais longe e elogiá-la pelo estilo e isentá-la de qualquer semelhança com a mulher da piada. Bem ou mal, o recado estará dado. Joana, se for minimamente esperta, captará a mensagem.
As ironias costumam cumprir o mesmo papel. Dizem como quem não quer dizer. Nestes tempos de mensageiros instantâneos via internet, é igualmente comum alguém fazer um comentário incômodo e completá-lo com aquele emoji amarelo que representa gargalhada. Do outro lado, quem lê o texto acompanhado do emoji (ou de uma sequência deles) fica, no mínimo, em dúvida: afinal, a pessoa quer me dizer algo desagradável e não quer que eu me ofenda ou ela está mesmo brincando?
Os mais céticos, como meus dois amigos, duvidam da neutralidade de quaisquer brincadeiras. Enxergam nelas mensagens veladas. Por sua vez, os mais crédulos geralmente não percebem segundas intenções. Não detectam ironias, nem ambiguidades propositais. Um tipo entre os dois talvez seja o meu: acredita no poder da hermenêutica para separar o joio do trigo, isto é, o que não passa de mera zoação e o que tem de fato o tal “fundo de verdade”. Generalizações são arriscadas. É como derrubar toda uma floresta para se livrar de uma única árvore venenosa. Rir ainda é o melhor remédio, de preferência sem fundo de verdade, gratuitamente mesmo.