Franquias ideológicas.

Quem conhece uma franquia sabe como é. Vem praticamente tudo pronto: entre vários elementos, o nome do negócio, a logomarca, a programação visual, o estilo arquitetônico, a decoração e, claro, os produtos. O franqueado tem pouca (às vezes, nenhuma) liberdade para fazer alterações. Mais conhecido e emblemático exemplo do mundo: a rede McDonald’s. Todas as lojas do planeta são quase idênticas (excetuando-se uma ou outra instalada em um prédio histórico, por exemplo). A maior vantagem costuma ser o investimento, por parte do franqueado, em um negócio que já tem nome e clientela cativa. Parece ser um modelo de sucesso. Não é de espantar, portanto, que gere frutos…

Recentemente, dei-me conta de que existe um tipo de franquia bastante exótico: a ideológica. Claro está que a comparação é meramente retórica. Não se trata de um modelo de negócio stricto sensu. No entanto, há semelhanças entre o franchising tradicional e o ideológico. Permito-me apontar algumas ao longo deste artigo.

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Funciona mais ou menos assim: o sujeito simpatiza-se com uma causa, decide lutar por ela, engaja-se por meio de alguma instituição (geralmente uma ONG), adquire conhecimentos relacionados àquela causa, aprende os jargões do grupo ao qual se filiou e/ou com o qual mais se identificou, reproduz essa terminologia constantemente; em suma, adota um comportamento-padrão. Padronização, como se sabe, é palavra-chave no mundo do franchising.

Em outros termos, esse sujeito vira uma espécie de franqueado. Compra o pacote todo. Não precisa inventar nada. Segue as regras. Vestuário, vocabulário, preferências políticas, opiniões, praticamente tudo nele segue a cartilha dessa franquia ideológica. Não se permite questionar as ideias do grupo (o franqueador). Chega até a não permitir que outros questionem essas ideias. Assume o risco de tornar-se fanático (no que difere do franqueado do mundo dos negócios). Tudo por uma boa causa. Literalmente.

O franqueado ideológico muitas vezes lembra o fanático religioso. Tem preguiça de pensar. Contenta-se com o que recebe pronto. Aceita tudo sem questionar. Para quem o questiona, tem respostas prontas na ponta da língua. Aprende a se defender, tal como o franqueado aprende a administrar seu negócio segundo diretrizes bem definidas. Zonas cinzentas, intersecções, matizes, nada disso entra na cabeça do franqueado ideológico. Afinal, em uma franquia, não há espaço para mudanças, inovações, alternativas. É a regra do jogo.

Retomo o exemplo de uma loja de sanduíches. Não importa se os clientes preferem seu hambúrguer bem ou mal passado, com ou sem tomate. Eles não têm opção. Vão consumir o hambúrguer-padrão, aquele que a rede de lojas fornece a toda a clientela. Quem lida com o franqueado ideológico também não deve esperar concessões do tipo “nesse caso, tudo bem”, “você tem razão nesse ponto, vou repensar minha maneira de ver”.

O franqueado ideológico tem preguiça de discutir ou está tão seguro de seu ponto de vista que, no máximo, finge concordar com quem pensa diferente dele só para se livrar logo do “chato” — ou pior, do “ignorante que não entende nada do assunto”. Continua a vender seu hambúrguer universal, sem alterações “ao gosto do freguês”, ou seja, sem adaptações.

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Pode-se defender o franqueado ideológico com o argumento de que ele é coerente, mantém-se fiel a seus princípios e aos de seus pares. Acontece que as tais causas pelas quais luta não são necessariamente universais — e a abordagem delas menos ainda. Geralmente, são causas polêmicas e, por isso mesmo, imploram por debate, revisão de abordagem, correção de rumo. Além disso, a causa (ou as causas) pode ter a adesão da maioria, mas a maneira de lutar por ela gerar divergência. João pode ser contra o racismo e não estar convencido sobre a política de cotas para negros e indígenas nas universidades, por exemplo. Maria pode ser simpática às ideias feministas e não apoiar determinadas formas de manifestação contra o sexismo.

O franqueado ideológico tem dificuldade para aceitar ideias que fujam dos requisitos da franquia. Resiste a aproximar-se ou a deixar aproximar dele quem não compra o pacote na íntegra. Segue mais ou menos aquele raciocínio extremista segundo o qual “ou está comigo ou está contra mim”. Críticas convertem-se em ofensas pessoais. Discordância passa a ser sinônimo de oposição ou de estupidez. Meio termo é sinal de covardia. Incerteza, de fraqueza. Silêncio é cumplicidade com o “errado”, o “mau” — ou omissão criminosa.

Preconceito

Franquias ideológicas são também como igrejas (há mesmo o registro de que algumas neo-pentecostais efetuariam um sistema de franchising: http://www.midiagospel.com.br/religiao/igreja-universal-reduz-valor-franquia-para-abertura-novos-templos). Independentemente de haver ou não dinheiro envolvido, segue-se um padrão moral preestabelecido, e é esse modelo que realmente faz sentido na ideia de franquia ideológica.

A franquia é, ao fim de ao cabo, um meio de vida. Dela depende a sobrevivência do franqueado. Dela, ele tira seu sustento e, no caso ideológico, sua sustentação. A sensação de pertencimento também equivale à do franchising e à do ambiente religioso. Os afins (ou seja, a rede) se atraem, se apoiam, se retroalimentam, se fortalecem.

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No sistema de franquia comercial, de loja em loja, estabelece-se a cadeia. Essa expansão robustece o negócio. No franchising ideológico, dá-se algo similar. Qual seria o problema, então? A padronização no âmbito comercial – ainda que criticável – tem se provado lucrativa. Já a padronização do pensamento, da visão de mundo, de uma proposta de comportamento parece-me um risco muito maior, até por sua própria natureza e abrangência. Afinal, a postura diante da vida está longe de ser como um sanduíche ou uma água de colônia.

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2 respostas para Franquias ideológicas.

  1. Perfeito. Esse tipo de franquia está em alta e fazendo um mal danado à humanidade.

  2. Dilza Simas Milhomem disse:

    Um texto bem escrito e com ótimas analogias.

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