Esta cidade é um mundo à parte, me disse um músico que toca em bares e restaurantes de Jericoacoara. Quase isolada, a cerca de 300 quilômetros de Fortaleza, Jeri é de difícil acesso, ao menos para mortais comuns – os ricos e famosos têm helicópteros a seu dispor e não precisam tomar sacolejantes jardineiras, caminhonetes lotadas ou picapes de tração nas quatro rodas para chegar a um dos complexos de praia mais belos do Brasil (para alguns, do mundo também).
É importante explicar como se chega a esse esplêndido cenário natural à beira-mar para que se entenda tudo o mais sobre ele. Quem mora longe do Ceará, como eu, precisa tomar um avião ou percorrer uma longa estrada até Fortaleza (a menos que se tome um caminho alternativo, do qual nunca ouvi falar). De Brasília à capital cearense, o vôo dura 2 horas e pouco. Pelo chão, o turista mais animado precisa encarar quase 1.700 quilômetros. Uma vez na capital cearense, pode-se pegar um ônibus, alugar um veículo de tração nas quatro rodas (os chamados 4 por 4) ou um helicóptero. Os preços, claro, variam imensamente conforme cada opção.
Considero-me turista médio, então fui de avião até Fortaleza e lá tomei um ônibus executivo com destino ao município de Jijoca de Jericoacora. São quase 6 horas de estrada. Infelizmente, ainda não se está na última parada. É preciso seguir viagem em veículo que suporte o sobe-e-desce das dunas de areia para se chegar a Jeri. Lá se vão mais 40 minutos, 1 hora, para cima e para baixo, naquele sacolejo que ora provoca enjôo, ora emoção. Tomei a tradicional jardineira – uma espécie de ônibus com bancos enfileirados, sem nenhum conforto. Não há suporte para mãos, nem cinto de segurança, e as laterais são abertas.
Era minha terceira visita a Jeri e, nas anteriores, eu também havia tomado uma jardineira, mas a sensação é sempre a de que se está diante de uma aventura inédita. Quis saber dos turistas europeus – eles são muitos, no ano inteiro – como estavam se sentindo ali naquele veículo inseguro, barulhento, com cheiro de óleo diesel queimado e assentos duros. Não pareciam muito assustados ou incomodados. Talvez buscassem exatamente isto: diferença, contraste em relação aos países deles.
Há mesmo um sabor distinto na viagem mais modesta. De helicóptero, faz-se o traslado com muito mais conforto e rapidez, sem dúvida. Todavia, o componente de emoção e de choque de realidades tem seu valor. É nesse caminho arriscado que se vai deixando, pouco a pouco, a rotina para trás. A completa diferença da vida urbana organizada, que se sente com mais intensidade ao longo do caminho tortuoso das dunas, vai preparando o visitante para a chegada ao mundo à parte ao qual se refere o músico do princípio deste relato. O percurso é quase um ritual de iniciação, preparatório para o ingresso no Planeta Jeri.
Quem nunca esteve em Jericoacoara antes geralmente se impressiona. Uma antiga vila de pescadores, a cidade é hoje (com o perdão do exagero retórico) uma Nova York sobre a areia. Ouvem-se diversos idiomas – a depender da temporada, a maioria dos turistas é estrangeira. The city never sleeps. Há entretenimento 24 horas por dia. Para se ter uma ideia, a célebre Padaria Santo Antônio abre suas portas às 2h e as fecha às 6h. Sim, na cidadela de pouco mais de 17 mil habitantes, existe padaria exclusiva para notívagos. Afinal, quem varou a noite no forró, no samba de raiz, no reggae ou numa festa de música eletrônica precisa mesmo de um pouco de carboidrato quentinho com manteiga para dormir sem fome.
Asfalto, porém, não há. Calçadas tampouco. Ruas de pedra? Nenhuma. Caminha-se sobre a areia fina. No entanto… Os carros, que um dia foram raros e só podiam entrar até um ponto da cidade para deixar e buscar pessoas ou levar mantimentos, agora avançam sobre várias ruelas. Bugres, motos, triciclos, quadriciclos e bicicletas também. De qualquer forma, o movimento dos veículos é muitíssimo menor que o de aglomerações urbanas semelhantes. Ainda assim, penso que o ideal estava no passado: o mínimo do mínimo de motores circulando em Jeri. A vocação da cidade é para a preservação da natureza. Não por acaso, é uma área de proteção ambiental (APA): o Parque Nacional de Jericoacoara.
Seu parcial isolamento sempre contribuiu para que Jeri fosse esse mundo à parte, o qual atraiu tanta gente de megalópoles brasileiras e estrangeiras, que encontrou ali o conforto das ruelas e becos de areia, da iluminação sem postes, das construções de no máximo dois andares (nenhum arranha-céu, portanto), da liberdade de ir e vir sem medo de um atropelamento ou de um assalto. Pena que essa realidade vem mudando a cada dia para pior, muito pior.
Antes, porém, de apontar a violação do paraíso, cumpre enaltecer o que há de melhor em Jericoacoara: a beleza de sua beira-mar. Dá gosto ver as ondas se quebrando de lado na areia, como se invadissem a praia na diagonal. Dá prazer contemplar a Duna do Pôr-do-Sol, onde turistas vão ver a grande estrela amarela mergulhar no verde do oceano. Relaxa observar os matizes da areia que se ergue em dunas a perder de vista. Acalma olhar para o céu de dia e assistir ao passeio das nuvens diante do Sol inclemente e, à noite, ao brilho discreto das estrelas em torno da Lua.
Ponto de encontro internacional de profissionais e amadores de surf, wind surf, kite surf, entre outras modalidades de esporte com prancha, Jericoacoara se colore com as velas que disputam espaço no mar. Nas imediações, lagoas oferecem paisagens tão ou mais belas, assim como a célebre Pedra Furada, o cartão postal mais divulgado, um lugar-comum que pouco tem de comum, graças à vista que ele permite tanto da terra coberta de pedras imensas (algumas lembram vagamente as esculturas pétreas da Ilha de Páscoa, no Chile) quanto do mar. É fácil produzir um guia turístico sobre Jeri. Não por acaso, jornais como The Washington Post e The New York Times e publicações para viajantes, como o Lonely Planet, cantaram para o mundo a beleza do lugar.
É preciso ser justo, porém, e desnudar o lado perverso de Jericoacoara. Se o cada vez mais intenso fluxo de turistas fez com que a cidade passasse a oferecer mais e melhor entretenimento – um comércio intenso, que vai dos vendedores de bijuteria e artesanato, com seu característico visual hippie ou rastafári, aos bares, restaurantes e pousadas de luxo –, ele também levou ao velho paraíso escondido o crime, a violência, a carestia, a exploração econômica dos turistas, entre outros problemas graves.
O crescimento de Jeri pode ter aumentado a arrecadação de ICMS e, portanto, enriquecido o município, mas não resultou na construção de um hospital ou pelo menos de um posto de saúde à altura das necessidades atuais, tampouco na instalação de uma delegacia de polícia com efetivo suficiente e bem treinado para o elevadíssimo número de visitantes nas altas temporadas. Nas duas semanas em que passei em Jeri, entre Natal e ano novo, tive notícia do estupro de uma alemã na Duna do Pôr-do-Sol e conheci outra alemã cuja irmã havia quebrado o braço em um passeio a cavalo e precisado ir a Sobral (a mais de 3 horas de Jericoacoara) para examiná-lo e nele colocar um simples gesso.
Moradores contam histórias de assassinato (ainda está fresca na memória a morte de uma italiana em 2014), roubo, assalto, estupro. Quando as vítimas são turistas, principalmente estrangeiros, viram logo notícia, mas há registros de nativos que também depararam com o perigo. Eu mesmo presenciei a ação de tipos que ofereciam, sem constrangimento, drogas a turistas em ruas movimentadas da vila.
Também resultado do crescimento desordenado é a falta de orientação adequada a condutores de veículos, de sinalização (as ruas nem sempre têm placa que indique seu nome), de infraestrutura para o recebimento do número explosivo de turistas – não por acaso, em altas temporadas, faltam água, luz, sinal de celular, durante horas. Na véspera do mais recente réveillon, havia longuíssimas filas na melhor sorveteria da cidade e, um dia, por falta de energia, todo o sorvete se perdeu.
Será que vale a pena tanto sacrifício por uma arrecadação mais alta de ICMS? Será que essa riqueza não pode se perder em algum momento se a criminalidade aumentar? Afinal, Jeri não tem a facilidade de acesso de um Rio de Janeiro. As pessoas vão até lá em busca do que já não existe em suas metrópoles. Quanto mais parecida com uma cidade grande, mais a vila corre o risco de perder visitantes realmente interessados em preservá-la.
Na horda de citadinos que invade Jericoacoara no verão, há numerosos que jogam lixo nas ruas, becos e praias. Muitas vezes me incomodou ver garrafas de plástico vazias ao sabor da brisa nas lindas praias de Jeri. Tocos de cigarro, palitos de picolé, papéis de bala aporcalham a área de proteção ambiental, e não há multa que baste para coibir os sujões.
Apreciei cada dia que passei em Jeri no fim de 2015. Valeu muito a pena, mais uma vez. No entanto, devo confessar que preferia a cidade que conheci em 2007 e aonde retornei em 2008. O Planeta Jeri de 2015 deixou em mim um gostinho agridoce: o paraíso natural está lá, mas a ganância humana vem convertendo celeremente esse Éden em mais um resort de luxo que as revistas de fofoca sobre celebridades logo descobrirão para enjaular, por alguns dias, estrelas do showbizz dispostas a posar felizes para milhões de fãs embevecidos. Então, será o adeus ao genuíno Planeta Jeri. A Terra o invadiu e o quer igualzinho a ela própria. Poderá ser tarde para salvar esse mundo já não tão à parte assim.
* Todas as imagens que ilustram este texto são de minha própria autoria.