O mundo é quadrado.

Sou homem de poucas certezas, mas começo a me convencer de que o mundo é quadrado. A Terra pode até ser redonda, mas o mundo, isto é, a parte que cabe aos seres humanos neste latifúndio, é tão quadrangular quanto um cubo.

 

Terra

 

Enquanto a Terra, circular, esférica, cilíndrica, gira com a facilidade de tudo o que tem esse formato, o mundo dos homens e mulheres não roda. Quando se movimenta, é com dificuldade, bem devagar.

 

Quem já tentou (ou viu alguém tentar) mover um cubo grande e pesado entende melhor o que estou dizendo. Natural e espontaneamente, ele permanece estático. Se uma força externa age sobre ele, arrasta-se. Quando ela é mais intensa, pode virá-lo e levá-lo adiante à medida que cada lado vai se apoiando na superfície, sempre a passos de tartaruga.

 

Quadrado

 

Claro está que, ao me referir à idéia de um mundo quadrado, emprego o termo no sentido de anacrônico, antiquado, atrasado, retrógrado, pois é assim que vejo tantas pessoas com dificuldade para se mover mentalmente, acompanhar o passar do tempo, compreender e aceitar o novo, o diferente.

 

Observo que há pessoas apegadas a antigos modelos de família, por exemplo. Só concebem o padrão “pai, mãe, filho ou filhos, todos unidos sob o mesmo teto”, chova ou faça sol. Têm esse paradigma como ideal. De fato, ele é ideal, porém mais no sentido de “restrito ao plano das idéias”, não ao plano da realidade.

 

FAMÍLIA_MARGARINA_VINTAGE_RETRO_ANOS 70

 

Digo isso por dois motivos principais: 1- há numerosas famílias problemáticas (no extremo, vale lembrar a ocorrência de parricídios, matricídios, fratricídios e tantas outras formas de violência física e mental dentro de núcleos familiares) e 2- existem modelos alternativos de família hoje em dia, como casais que moram separados, embora sejam afetivamente unidos (às vezes, mais que aqueles sob o mesmo telhado); a opção pela vida de solteiro reunido de amigos (os tais parentes que se podem escolher); carreiras eclesiásticas celibatárias (muitos monges se dizem felizes); entre outros.

 

Também se reproduzem por aí aqueles para quem a História do Brasil parou ou deveria ter parado antes de 1888. Ainda vêem negros como sub-raça e tratam como escravos quem lhes presta serviços domésticos. Há mesmo quem literalmente escravize trabalhadores!

 

Original da Lei Áurea, de 1888 (Arquivo Nacional). Original da Lei Áurea, de 1888 (Arquivo Nacional).

 

Os mais liberais (?!) querem conviver o mínimo possível com gente “diferenciada”, ou seja, de poder aquisitivo muito inferior ao seu. Estão ou não parados no tempo? Comportam-se ou não como quadrados? Empacaram. Não saem do lugar. Um guincho talvez resolva?…

 

Tampouco se movem os que ignoram a simbólica “Queima dos Sutiãs” de 1968, quando ativistas do Movimento de Libertação das Mulheres (WLM, na sigla em inglês) foram às ruas em Atlantic City, nos Estados Unidos, para protestar contra a redução da figura feminina a mero símbolo sexual. Dorme em pé quem acredita que o machismo virou cinzas com esse episódio.

 

Bra-burning

 

A despeito dos avanços, o sexismo resiste tanto no plano do discurso quanto no da prática – basta conferir o número de mulheres recém-eleitas para o Congresso Nacional brasileiro em comparação com o de homens, para ficar em um só exemplo.

 

Quer mais quadrado que um sujeito homofóbico? Que diferença faz quem o outro ama e com quem faz sexo? Isso só deveria importar quando está em jogo interesse afetivo, sexual ou ambos. No anonimato das ruas, no ato de contratação de trabalhadores, na convivência pública, esse deveria ser mero detalhe. Cada um que cuide de si! Ah, se fosse assim!

 

Insisto na questão tempo: para o homofóbico, a História parou antes de 1969, quando se deu a célebre Rebelião de Stonewall, em Nova York (EUA). O protesto leva esse nome porque teve início no bar Stonewall Inn e espalhou-se pelas ruas vizinhas.

 

Stonewall-Riot

 

Farta dos abusos da polícia e da discriminação, a população hoje conhecida como LGBT reagiu. A manifestação foi um marco histórico, mas os quadrados até hoje insistem em se meter nos lençóis dos outros – muitas vezes, na base da pancada ou do homicídio. Talvez Freud explique…

 

Dá para voltar (e parar) um pouquinho mais no tempo: 1960, ano de fundação da Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade. O nome é auto-explicativo, embora os conceitos de tradição, família e propriedade sejam discutíveis, especialmente com o passar de mais de 50 anos.

 

Ademais, a TFP e seus simpatizantes defendem valores cristãos, e o planeta em geral, assim como o Brasil em particular, como se sabe, reúne também adeptos de outras religiões, além de agnósticos e ateus.

 

Está na moda a expressão “pensar fora da caixinha”. Caixas, em sua maioria, costumam ser quadradas. No meio empresarial, quem tem criatividade, escapa do óbvio, quebra paradigmas, aposta na inovação – outro termo bastante em voga – tende a ter melhor imagem. É a figura do empreendedor, do vencedor do século 21.

 

Thinking_outside-the-box

 

Claro que “pensar fora da caixinha” – não ser quadrado, portanto – é algo bem visto no mundo dos negócios! Dá lucro. Fatura. Só por isso. Saiu desse contexto, vitorioso, bem-sucedido, respeitado é quem se encaixa, quem se enfaixa. A palavra-de-ordem parece ser: “Inove nos negócios, mas se enquadre no sistema”.

 

Não por acaso, os verbos “encaixar-se” e “enquadrar-se” têm a origem que têm. Pertencem ao universo do comportamento bovino, de manada. Destacar-se só é visto como positivo quando representa sucesso material – inclusive, simbolicamente material, como no caso do estrelato, que reúne fama e fortuna. O pop star pode. O empregado doméstico não. No palco, tudo bem. No chão de fábrica, nem pensar!

 

Que me perdoem os quadrados – e tenho amigos entre eles – mas essa postura, para mim, não “desce redondo”! Nem com muita cerveja!

 

Cervejas_artesanais

Esse post foi publicado em Comportamento, Política e marcado , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , , . Guardar link permanente.

Deixe um comentário

Preencha os seus dados abaixo ou clique em um ícone para log in:

Logo do WordPress.com

Você está comentando utilizando sua conta WordPress.com. Sair /  Alterar )

Foto do Facebook

Você está comentando utilizando sua conta Facebook. Sair /  Alterar )

Conectando a %s

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.