Vejo filmes para me divertir. Vejo filmes para aprender. Vejo filmes para pensar. Vejo filmes. Fomos eu e uma de minhas irmãs assistir a “Lucy”, de Luc Besson, para nos entretermos, e nos entretivemos. Curiosamente, a aventura também nos fez pensar. Por mim respondo e já me explico!
Abro antes um parêntese. Não sou crítico de cinema. Portanto, pouco me importa se Luc Besson fez concessões demais ao padrão Hollywood e, por causa disso, usou e abusou de perseguições de automóvel, explosões, tiros, socos e pontapés. O que mais me excitou em “Lucy” foi a possível mensagem da história. Fecho parêntese.
“Lucy” é um tentador pretexto para quem gosta de “viajar” pelo que há por trás de uma narrativa, seu conteúdo, sua matéria-prima. Se o diretor soube ou não aproveitar bem isso em termos de arte cinematográfica, que se entenda com os críticos e parte do público (igualmente crítica). Para mim, “Lucy” foi um prato cheio.
Em primeiro lugar, porque o filme combina ficção científica e certa dose de filosofia. Em meio à ação eletrizante (Lucy, a personagem de Scarlett Johansson, é quase uma versão feminina de Jason Bourne), há uma pergunta que serve de pontapé inicial para a história, e essa indagação suscita uma hipótese: o que ocorreria se uma pessoa conseguisse utilizar 100% do potencial de seu cérebro?
Importa-me pouco se é mito o fato de o ser humano utilizar somente 10% de seu potencial cerebral. O curioso na trama de Besson está na construção de uma personagem que atinge, involuntariamente, um suposto grau máximo de controle sobre o próprio corpo e a própria mente, assim como um nível excepcional de inteligência. De tal acontecimento não há registro na história. Talvez por isso mesmo, a imaginação tenha ainda maior importância.
Da parte científica (ou pseudocientífica), encarrega-se o personagem de Morgan Freeman, o professor Samuel Norman, justamente quem, durante uma palestra sobre a evolução da espécie humana, responde a um de seus ouvintes sobre o que poderia ocorrer se uma pessoa chegasse a utilizar 100% de seu cérebro. Ele diz simples e honestamente: “Não sei”. Os destinos de Lucy e do professor Norman precisarão se cruzar para que ele descubra a resposta (ver foto abaixo).
Antes que isso ocorra, porém, a narrativa induz o espectador a observar o mundo em que vive: seja em Taipei, seja em Paris, seja em Nova York (cidades de três continentes, onde a trama se desenvolve), impera a cobiça, que leva à corrupção, à violência e à morte.
Curiosamente, é pelas mãos do crime que Lucy desperta seu potencial máximo, como no ditado segundo o qual “há males que vêm para bem”. Seria essa uma das possíveis mensagens do roteiro de Besson?
Se, porventura, o filme parece suscitar a crença em um “super-homem” (em sentido genérico, com o perdão de quem alerta contra o sexismo na linguagem), se induz o espectador a crer em um gigante adormecido dentro de cada indivíduo, a narrativa também parece, em princípio, advogar pela crença no poder da ciência. Seria casual o fato de a heroína da trama converter-se em mártir em nome do conhecimento?
As referências do filme às teorias darwinistas são óbvias, especialmente no que diz respeito à evolução das espécies. Daí Besson brincar com a Lucy do século 21 e sua ancestral Lucy, primata de 3.2 milhões de anos (representação na foto acima).
Em uma viagem no tempo, ambas se encontram, e seus dedos se tocam (referência ao elo perdido?) – mais ou menos como no célebre afresco de Michelangelo “A Criação de Adão”, exposto no teto da Capela Sistina, no Vaticano, o qual retrata justamente a criação do primeiro homem, segundo o livro do Gênesis (imagem abaixo). Tanto simbolismo não pode ser gratuito – goste-se ou não dele.
É possível ir mais longe. Segundo relato jornalístico, os cientistas que deram o nome de Lucy ao primeiro esqueleto encontrado de um Australopithecus afarensis inspiraram-se na canção “Lucy in the sky with diamonds”, dos Beatles (os motivos disso não fazem diferença aqui). Para alguns intérpretes da letra dessa música, a banda de Liverpool referia-se ao LSD (L de Lucy, S de Sky e D de Diamond). É justamente uma droga ultrapoderosa que desperta, na Lucy do filme, o potencial máximo de seu cérebro. Seria mera coincidência? Talvez sim. Talvez não.
A seqüência final de “Lucy” deixou-me igualmente intrigado porque, após aparente apologia à ciência, Luc Besson parece sugerir, além de uma ética baseada na suprema inteligência (idéia bastante cara a diversos teólogos), a possibilidade de conciliação entre a ciência e a fé. Afinal, em que se converte um super-humano?
Se Lucy é capaz de condensar todo o conhecimento do mundo em uma espécie de pen-drive, ela também demonstra claramente a transcendência do próprio humano, da própria matéria. Mais: da própria morte.
“I am everywhere” (“Estou em todos os lugares”) é a mensagem final da heroína, que, ao longo do filme, vai provando sua redenção e abnegação (supremo amor à humanidade, apesar de todos os crimes que cometeu e dos quais foi vítima?). Demonstra também sua onisciência e onipotência. No desfecho da história, então, Lucy prova ter se tornado também onipresente.
Não seriam exatamente esses os principais atributos de Deus, segundo os cristãos? É à imagem e à semelhança d’Ele que se faz o super-humano, ou melhor, o sobre-humano? Besson parece longe de ser para o cinema o que Michelangelo foi para a pintura, mas que mal há nas inspirações?…