Nada me comove e intriga mais que relatos de infanticídio*. O caso Isabella Nardoni, na cidade de São Paulo em 2008, por exemplo, me chocou e indignou ao mesmo tempo em que instigou em mim profunda curiosidade. O que pode levar pessoas adultas a matarem uma criança? Isabella tinha apenas 5 anos!
Em 2013, a imprensa deu destaque à morte do menino Joaquim Ponte Marques, de 3 anos, desaparecido em Ribeirão Preto (SP) no dia 5 de novembro e encontrado morto em Rio Pardo (SP) no dia 10 do mesmo mês. O principal suspeito de tê-lo matado é o próprio padrasto do garoto. A mãe nega qualquer tipo de participação no crime. Independentemente de quem seja o responsável, o homicídio de Joaquim é revoltante.
Em abril deste ano, foi a vez de o menino Bernardo Uglione Boldrini, de 11 anos, desaparecer misteriosamente e reaparecer morto dias depois em Frederico Westphalen, cidade próxima a Três Passos (RS), município de 20 mil habitantes, a 500 quilômetros de Porto Alegre (RS). Os principais suspeitos do homicídio são o pai e a madrasta do garoto.
Segundo a imprensa, vizinhos da família Boldrini testemunharam que Bernando passava maus bocados em casa. O próprio menino chegou a procurar o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente de Três Passos para pedir apoio e expressar o desejo de viver com outra família. A denúncia avançou, mas o juiz acabou por conceder ao pai de Bernardo 90 dias de prazo para que a relação entre ele e o filho melhorasse. Em bem menos tempo, porém, encontrou-se Bernardo em uma cova improvisada em Frederico Westphalen.
Repito a pergunta: o que pode levar um adulto a matar uma criança? E acrescento: de acordo com as investigações dos três casos (há centenas de outros, como se sabe), existem fortes indícios de que foram realmente os próprios familiares, responsáveis pelos filhos ou enteados, que deram cabo da vida deles, na maioria das vezes com requintes de crueldade. A questão, portanto, se complica: o que pode levar um pai ou uma mãe ou ambos a matar o próprio filho ou filha (e até vários)?
Nos três exemplos aqui mencionados, os suspeitos estão atrás das grades ou sujeitos a julgamento com chances reais de ir parar na cadeia. O casal Nardoni, por exemplo, deverá permanecer detido na penitenciária de Tremembé (SP) por quase 30 anos.
Espantosamente, no caso Isabella Nardoni, de acordo com o trabalho da perícia oficial, teria havido tempo de os assassinos mudarem de idéia. Não mudaram. Para mim, mais chocante ainda foi eles não parecerem arrependidos, não terem aparentado atravessar uma crise de consciência (ou ao menos não forte o suficiente para confessarem o crime), não se desesperarem. Se realmente não foram os responsáveis pela morte de Isabella, como alegam, teriam, então, mais um motivo para expressar revolta, angústia, depressão profunda, inclusive para adoecer. Se isso ocorreu, eu não soube, pouca gente soube.
Mesmo que o casal tenha entrado em parafuso entre quatro paredes, isso me parece pouco. O que costumo observar é que pessoas realmente conscientes, com algum grau de empatia, quando cometem um crime ou são acusadas de um (sobretudo se são inocentes), mergulham em um inferno psicológico do qual só se libertam (quando se libertam) com auxílio psiquiátrico. Não conseguem dar entrevistas relativamente longas à TV. Simplesmente surtam!
O casal Nardoni falou ao “Fantástico”, à época, com impressionante sobriedade. A tensão aparente era apenas a de pessoas convidadas a responder perguntas constrangedoras. Não observei nada atípico, nada que insinuasse uma dor lacerante.
Até onde sei, psicopatas (pois é assim que os vejo) não surtam. Têm sangue frio. Seguem adiante. Mesmo flagrados em delito, parecem nutrir a esperança de, um dia, ainda levar uma vida “normal”. Contratam advogados para os defenderem, concedem sóbrias entrevistas à imprensa, juram inocência. São cínicos, enfim.
Nenhuma explosão de fúria repentina justifica que uma pessoa dê cabo da vida de outra, mas isso ao menos ajuda a explicar o crime. Sobretudo se a fúria vem se acumulando há algum tempo. Até porque, no mundo atual, grosseria tornou-se hábito; agressão verbal e/ou física, banal; estupro gera mais indignação que ação; ou seja, a violência em geral tornou-se parte da vida cotidiana, quase como abrir a geladeira ou dar a partida no carro. É fácil acumular raiva.
Ao mesmo tempo, ouço muito: “É assim mesmo. Não tem jeito.” As pessoas conformam-se. Acomodam-se. Sentem-se tão impotentes que desistem de defender um mundo melhor. Alguns poucos milhares até se mobilizam. Chamam a atenção da imprensa. Bradam palavras de ordem. A ONU e o Vaticano condenam as atrocidades. Mas do discurso à ação pouco se consegue avançar.
A ala mais sociológica, por assim dizer, condena o sistema, o modo de produção capitalista, modelos socioeconômicos neoliberais, as influências e o papel (negativo ou omisso) dos meios de comunicação de massa, a educação escolar falha, a construção de uma cultura de violência e materialismo, a vitimização de grupos por preconceito e discriminação etc.
A ala mais psicológica, por sua vez, destaca a dimensão do indivíduo, suas fobias, angústias, neuroses, psicopatias, sociopatias, traumas, que o fazem único e não somente parte de uma engrenagem maior – sobretudo porque cada um reage de forma diferente a essa engrenagem, ao establishment, à cultura, ao status quo vigente, ao tal “sistema”, enfim.
É possível que ambas as correntes estejam certas aqui, equivocadas acolá. Acredito que nenhuma ciência ou modelo filosófico seja capaz de explicar isoladamente a violência no mundo. Mas, no caso do infanticídio, em particular, admito que me inclino mais à linha médico-psicológica, por assim dizer – ou seja, tomo a liberdade de ser bastante elástico e incluir, nessa categoria, psicologia, psicanálise, neurologia e psiquiatria, as quais estudam e identificam uma série enfermidades ou anomalias “cérebro-mentais”.
Claro que essa vertente explicativa não inocenta nem atenua o ato dos infanticidas. Mas, considerada com mais atenção, certamente contribuiria para que esse tipo de crime não se repetisse com tanta freqüência.
Quando se diz que “de perto, ninguém é normal”, convém levar isso a sério. Quem tem ouvidos para os desabafos realmente sinceros de amigos e conhecidos sabe que a tal “normalidade” é um mito, um modelo que determinada sociedade, em determinado período, deseja alcançar porque o vê como o mais adequado. Os instintos, os impulsos, as paixões, o Id estão dentro de todos. Configuram o humano.
O instinto de vida e de morte (Eros e Thanatos), assim como o desejo de amar e receber amor, ser feliz e fazer outros felizes, está presente na maioria das pessoas. Algumas aprendem a administrá-los – são afetuosas quando o julgam cabível e refreiam a agressividade quando sabem que causarão danos (digamos que desenvolvem melhor o chamado superego). Intimamente, porém, o potencial tanto de dar afeto quanto de ferir está lá, visível em uns, velado em outros. Como dizia o poeta, “a mão que afaga é a mesma que apedreja”.
Quem quer que dê cabo da vida de uma criança inocente (isto é, indefesa, inofensiva, dócil, afetuosa), sobretudo se forem pais ou outros familiares dela, só pode ter sérios distúrbios mentais. Talvez seja psicopata. Nos casos citados neste artigo, e em tantos outros que acompanhei pelo noticiário, houve premeditação do crime. Houve momentos de racionalidade para que se planejasse tanto o assassinato quanto a ocultação do cadáver (ou sua desconfiguração, para dificultar o trabalho da perícia, como parece ter sido o caso da menina Isabella Nardoni).
O descontrole emocional pode ser brusco, repentino, impensado e levar alguém a matar. Nesse caso, o criminoso eventual (ou “acidental”, por assim dizer, o qual costuma ser réu primário) geralmente se entrega à polícia ou, quando se vê capturado, acaba por confessar o crime e, arrependido, chora, desespera-se. Reconhece que agiu por impulso e destruiu mais de uma vida – a de quem ele matou, a dos entes queridos de quem ele vitimou e a dele próprio. Baixa a cabeça. Envergonha-se do que fez e até de si próprio. O remorso e a culpa corroem-no. Não raramente, suicida-se.
O psicopata – ou qualquer que seja o distúrbio “psicocerebral” do criminoso – mostra-se racional e não desaba. Li e já observei que há pessoas cuja dor tem efeito retardado – só a demonstram bem depois ou a sós. Não creio que sejam psicopatas por isso. Mas o mentalmente enfermo parece ter consciência do que fez e não se arrepende (a não ser por estar preso ou ameaçado de perder tudo o que tem). Afinal, agiu com dolo. Premeditou. Calculou. É frio e não deixará de sê-lo, a menos que um dia se descubra medicamento capaz de curá-lo. Mesmo assim, já terá feito um ou mais estragos…
Um pai, uma mãe ou ambos, quando cometem infanticídio, não estão, via de regra, diante de uma ameaça real. Estão ante o próprio filho, que eles mesmos criaram, portanto o conhecem bem. Se não o conhecem, isso já é mau sinal. Se não o amam, eis um péssimo indicativo. Se o vêem como um estorvo em suas vidas, pior ainda. Se o maltratam ou excedem-se nos castigos, algo está definitivamente errado. Se o enxergam como “criança-problema” e não buscam auxílio psicológico para ela (ou para a família), a situação é crítica . São, todos esses, indícios de problemas, tanto para os pais quanto para o filho (ou filha).
Se a sociologia encontra seus “réus” – superestruturas que talvez levem séculos para mudar –, a psiquiatria e ciências afins poderiam, quiçá, trazer uma solução mais rapidamente. Se elas não têm o poder de ressuscitar os mortos, podem, ao menos, conscientizar os vivos de que todos precisam tratar-se, seja por meio de psicoterapia, seja com remédios, seja com ambos (afinal, cada caso é um caso). Antes que seja tarde demais…
* Emprego aqui o termo ‘infanticídio’ em sentido geral, como assassinato de crianças, não em sentido estrito, como utilizado no Direito Penal.