Vivo criticando o romantismo. Vivo dizendo que ele se nutre de ilusões. O romântico sonha, tem os pés fora do chão. É como um sonâmbulo. Vagueia e divaga enquanto dorme. Somente o acaso pode livrá-lo de um desastre. Se a sorte o abandona, o romântico cai das nuvens. Quebra a cara. Descobre que não tem e nunca teve asas.
Quando critico o romantismo, sou abrangente. Incluo o romantismo dos apaixonados por uma pessoa, por uma religião, por uma ideologia, por uma causa, por uma idéia. Enfim, critico a falta de crítica, ou melhor, de senso crítico. Critico a falta de racionalidade. Critico a paixão – e, para evitar ser contraditório, critico-a sem paixão. Faço uma crítica fria, por assim dizer. Não me exalto.
Dito isso, permito-me entrar em contradição. Como mais um reles integrante da espécie humana – talvez a mais defeituosa entre todas – também sou contraditório muitas vezes. Até evito me contradizer, mas me contradigo. Paciência… Daí eu confessar o que tenho para confessar.
De tempos em tempos, apaixono-me. Exatamente: fico perdidamente apaixonado por alguém. Alguns certamente afirmarão: “Grande novidade! Sempre soube!”. Os românticos até aplaudem: “Que bom! A paixão dá sabor à vida!” Só que eles, às vezes, esquecem-se de que a paixão também pode causar dor, muita dor. Se correspondida, pode ser dolorosa quando a relação termina. Se não correspondida, pode machucar tanto quanto ou mais, por gerar profunda e angustiante frustração.
Claro que, nesta confissão, estou me limitando a apenas um tipo de paixão: a que se sente por outra pessoa. Até porque é a mais comum em minha vida, a que mais me leva à lamentável contradição de defender a racionalidade e, ao mesmo tempo, cair nas trapaças do coração.
E por que, pergunta-me o leitor ou a leitora, entrego o jogo desta forma? Simplesmente porque sei haver muita gente, muita gente mesmo, que passa por essa situação e preferiria não experimentar a dor da paixão mais de uma vez na vida. Ao ler confissões como esta, gente assim se recorda de que não está só e dá-se conta de que até quem critica o romantismo pode ser alvo dele.
Um amigo, curiosamente bastante jovem, ainda inexperiente no ramo, confessou-me, há poucos dias, que nunca mais quer sofrer por uma mulher. Foram duas decepções consecutivas, que o marcaram profundamente. Eu ousaria até a dizer que o traumatizaram. Eu disse duas. Imagine se fossem seis, dez, quinze…
Não por acaso, os ingleses utilizam a expressão ‘to fall in love’ ao se referirem ao ato de apaixonar-se. Na língua inglesa, diz-se literalmente ‘cair no amor’. Nesse caso, embora contenha a palavra ‘passion’, o vocabulário inglês adota ‘love’ (amor). De qualquer forma, o que conta na expressão é mesmo o verbo ‘to fall (in)’ (cair). O significado dela como um todo remete a uma emoção mais forte, avassaladora, incontrolável, não a um tipo de ternura ou de sentimento de paz e conforto ao lado de uma pessoa querida. Em inglês, como em português, alguém pode amar (to love) o avô, por exemplo, mas dificilmente se apaixonará (to fall in love) ou estará apaixonado (in love) pelo avô, a não ser em sentido figurado, obviamente.
A paixão em inglês é verbalizada, pois, como uma queda. É como se uma pessoa, ao apaixonar-se, tropeçasse e caísse no chão – ou em um buraco. A metáfora me parece bastante adequada. Transmite a idéia de fragilidade, vulnerabilidade, no caso, a um sentimento. Em português, há expressão similar, embora empregada mais em caráter informal: ‘ficar (ou estar) de quatro (por alguém)’, ou seja, ver-se igualmente no chão, frágil, vulnerável.
Não faltam, aliás, passagens em livros, filmes, novelas românticos em que o apaixonado (ou os apaixonados) literalmente ajoelha-se diante da pessoa amada, prostra-se aos seus pés. Rende-se à paixão. Submete-se a ela. Abre mão do orgulho. Desce. Cai.
Sobejam casos de depressão (a enfermidade) cuja causa principal é decepção amorosa. O que significa, literalmente, a palavra ‘depressão’ senão abaixamento de nível, ou seja, em última instância, queda? Como se sabe, há deprimidos que realmente não conseguem se levantar da cama. Não à toa, o termo paixão vem do grego ‘pathos’, relacionado a sofrimento, emoção. Pathos também deu origem à palavra ‘patologia’, ou seja, doença.
Dá para entender por que, a despeito do belo discurso romântico, presente em numerosas e encantadoras narrativas, há quem fuja da paixão, como meu jovem amigo, ao qual bastaram duas frustrações amorosas para levá-lo a tomar cuidado redobrado ao se envolver com outras garotas. E também dá para compreender por que há quem critique o romantismo, como venho fazendo.

“Os Sofrimentos do Jovem Werther”, ícone do romantismo literário alemão e mundial, por Johann Wolfgang von Goethe.
No entanto, como diz a linda canção de João Bosco: “Quando o amor acontece, a gente logo esquece que sofreu um dia. Esquece, sim!”. Está certo o compositor. Quando a paixão acontece (prefiro o termo ‘paixão’, para os fins deste artigo), há pouco ou nada a se fazer, especialmente se (como nas enfermidades) não se agir depressa.
É possível, claro, lutar contra a paixão – se ela não for bem-vinda. Há como represá-la, reprimi-la, ocultá-la. Mas, uma vez instalada, não há como expurgá-la de imediato, quando bem se quer. Ela pode durar mais ou menos tempo. Pode, inclusive, permanecer durante toda uma vida – sobretudo se houver reciprocidade. E também pode reinventar-se, quando há uma substituição, por exemplo. Nesse caso, ela apenas se transfere. Troca de “objeto”.
Infelizmente, a paixão parece ter vida própria. Pode até fingir-se de morta e, de súbito, reacender-se, ressurgir, re-emergir. Como também pode desaparecer para sempre, morrer, sem a menor possibilidade de ressurreição. Em paixões recíprocas, pode-se até tentar manter aceso o tal “fogo” inicial. Ainda assim, nada garante que ela, caprichosa, prefira ir embora e abandonar o casal (ou apenas um dos dois), seja aos poucos, seja repentinamente, como tantas vezes ocorre.
Talvez as diversas ciências, isolada ou conjuntamente, consigam, um dia, desvendar os mistérios da paixão e, por conseguinte, do amor (o qual suponho ser mais elevado, posto que mais tranqüilo e confortante). Se isso ocorresse, talvez fosse possível à espécie humana ter algum controle sobre esse sentimento tão forte, tão perturbador (inclusive quando recíproco).
Por enquanto, bilhões de pessoas, como eu e esse meu jovem amigo, têm de aprender a administrar o prazer e a dor para que paixões não nos ceguem, não nos curvem, não nos levem ao rés do chão. O que me parece mais saudável é mesmo a serenidade de um sentimento sem muitos altos e baixos, sobressaltos, temores, intrigas, jogos, insegurança.
Vejo as emoções fortes, numa relação sadia, como tempero, não como prato principal. É isso o que me dizem sentir os que afirmam amar e experimentam uma relação estável.
Há poucos dias, tomado de ceticismo, perguntei a outro amigo, que mantém um relacionamento fixo e satisfatório há 13 anos: “Vocês nunca brigam?” Ele me respondeu: “Sim, brigamos de vez em quando.” Insisti: “Mas não chegam a ficar sem se falar por pelo menos uma semana?”. A resposta foi mais ou menos esta: “Se um casal chega a passar uma semana sem se falar, como pode ter uma relação sadia? Não faz sentido!”.
Acredite quem quiser. Eu tendo a acreditar nele porque conheço o casal há muito tempo, e a intimidade que tenho com eles é suficiente para me revelarem caso eles se desentendessem seriamente. Nunca soube nem desconfiei de um atrito grave ou rompimento entre eles ao longo de todos estes anos.
Tendo a confiar, igualmente, no depoimento daqueles que já experimentaram paixões avassaladoras e relações tranqüilas, pois sabem avaliar melhor umas e outras. Todos eles garantem que foi nas segundas que experimentaram amor de verdade. Devem estar certos. Ao menos, parecem saber o que dizem. Já é algum sinal…