Paixão pelo próprio pensamento.

Bizarra situação ontem à tarde me trouxe à memória uma passagem do romance “Orlando”, de Virginia Woolf. Diz a genial escritora (no original que me atrevo a traduzir em seguida): “No passion is stronger in the breast of a man than the desire to make others believe as he believes. Nothing so cuts at the root of his happiness and fills him with rage as the sense that another rates low what he prizes high.”

[Algo mais ou menos como: “Nenhuma paixão é mais forte no peito de um homem que o desejo de fazer os outros pensarem como ele pensa. Nada mais corta sua felicidade pela raiz e o enche tanto de raiva quanto a sensação de que outro menospreza o que ele tem em alta conta.”]

Orlando_Capa

Nestes tempos de redes sociais, tenho testemunhado manifestações diárias dessa “paixão”. São muitos os apaixonados por suas próprias idéias, crenças, posições e pelo desejo de que os demais pensem da mesma forma.

Alguns chegam ao extremo de pregar. O tom é panfletário. A função conativa (ou apelativa) da linguagem predomina. A emoção domina.

A rigor, essas pessoas estão exercendo o direito à liberdade de expressão. Quem sou eu para negar-lhes esse direito? Afinal, também eu lanço mão dele – inclusive neste blog.

Só que, ao ver, ouvir ou ler a pregação de uma pessoa, geralmente tentando converter outra a sua crença (seja ela qual for), um ditado popular logo vem à minha cabeça: “Quem fala o que quer ouve o que não quer.”

É este o risco que o adágio sabiamente lembra: quem diz o que pensa precisa estar preparado para uma reação contrária, exatamente porque a liberdade de expressão é via de mão dupla.

Biblia_aberta

Nas redes sociais, pipocam discursos com pretensões de conversão, inclusive religiosa. E dá-lhe Bíblia! Pobre Bíblia! Essa deve ser a obra mais citada e a menos compreendida da história da humanidade.

Que me perdoem os pregadores, mas acho pregações extremamente pretensiosas (e chatas). Como podem ter tantas certezas? Onde está a humildade da dúvida?

Admito que, às vezes, tento convencer alguém de algo. Mas não converter, pois não tenho crença arraigada, nem certezas demais. Gosto da liberdade de mudar de posição, desbravar novos caminhos, questionar.

A propósito, lembro agora um verso de uma canção de Raul Seixas: “Eu prefiro ser… essa metamorfose ambulante… a ter aquela velha opinião formada sobre tudo…”.

Raul-seixas

A flexibilidade – especialmente de pensamento e de crença – parece-me uma vantagem. Acho que a gente se sente mais leve sem esse tipo de apego, sem a disposição de morrer por uma religião, um partido, uma teoria, uma idéia.

Aliás, essa observação me faz lembrar também uma frase bem-humorada de Millôr Fernandes, mais ou menos assim: “Intelectual é aquele que está disposto a defender uma idéia até a morte. Do outro.”

Talvez o escritor pudesse ter generalizado e dito “fanático” em vez de “intelectual”. Em todo caso, garantido está o humor. Melhor rir do que chorar. Melhor caçoar do que matar. Ou não?

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3 respostas para Paixão pelo próprio pensamento.

  1. Elizabeth Carvalho disse:

    Com o passar dos anos fui aprendendo a por ponto final, pular a linha e abrir um novo parágrafo no caminhar da minha vida mas nem sempre foi assim porque houve um tempo que “morri”, sim, ” por uma religião, um partido, uma idéia, uma teoria “. Fui me livrando desse risco de ter que “morrer” a cada vez que a religião ou os religiosos, o partido ou os filiados, a teoria ou as teses fugiam do meu entendimento de SER. Já me percebi, em algumas fases, lagarta, noutras metamorfoseando, no escuro e no silêncio para, enfim, voar borboleta…

  2. Ao receber, no face, uma notificação do que compartilhei ano passado, deparei com seus textos e com meus comentários e continuei gostando e aprovando a ambos, no entanto gostaria de explicitar que este texto que me foi indicado por vc em resposta anterior ao texto: Ponto e Reticências omiti que a perda do meu único filho com um único tiro nas costas, disparado pelo seu “futuro sogro”, que continua impune apesar de ter sido indiciado por homicídio doloso, deixou para sempre em minha vida as reticências…não houve ponto final, ainda…

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