Um homem assalta, estupra, mata. É julgado, condenado e preso. Na cadeia, torna-se cristão praticante. Lê a Bíblia, aprende a rezar.
Uma família é vítima de assalto, estupro e assassinato. Seu consolo é ter visto o bandido julgado, condenado e preso. Destroçada, busca apoio na religião.
Cumprida a pena, o criminoso passa a freqüentar uma igreja. Com o tempo, conquista o direito de pregar. Lança mão de seu próprio exemplo para defender a “conversão” e uma vida de amor e paz em Jesus.
É com espanto que a família, vítima de uma série de crimes, chega à igreja um dia e depara com aquele mesmo homem que tanto a prejudicou. Vê-lo pregar amor e paz lhe é insuportável, e ela deixa a igreja.
O relato acima é fictício, mas não impossível. Seja como for, serve de ponto de partida para um raciocínio que venho desenvolvendo a partir de fatos reais e que gostaria de compartilhar. Ele obedece à ordem da seguinte série de indagações:
1- Há de fato conversão sincera?
2- Caso haja, essa conversão é suficiente para transformar uma pessoa completamente, às vezes ao ponto de torná-la o extremo oposto do que sempre foi?
3- Como avaliar uma conversão, isto é, como saber se ela de fato operou mudanças?
4- A simples conversão (ou adesão) a uma religião basta para que um ex-criminoso possa pregar amor e paz? Em caso afirmativo, esse direito estender-se-ia também à situação em que ele pregaria às próprias pessoas que prejudicou?
5- Vítimas de um criminoso têm o dever de perdoá-lo e aceitá-lo, inclusive como pregador, sem ver nisso cinismo ou ironia de mau gosto?
Tendo a achar possível uma conversão sincera. Por que não? Um homem pode arrepender-se do que fez e abraçar uma religião que o conforte. Já acho menos provável que essa conversão seja o bastante para transformá-lo completamente; para, em relativamente curto período, torná-lo o oposto do que sempre foi.
Ainda que essa transformação, quase “milagrosa”, se efetue no plano das aparências, como ter certeza de que se deu realmente, no plano mais profundo do indivíduo? Afinal, pode haver sempre conversões por conveniência. Em se tratando de criminosos e trapaceiros, quem duvida de que sejam capazes de representar? Seriam os tais “lobos em pele de cordeiro”.
Admitindo-se a hipótese de uma conversão sincera no plano consciente do indivíduo, o que dizer do plano inconsciente? A adesão dele a uma religião não poderia ter, inconscientemente, motivações menos nobres? Que tal vaidade? E orgulho? E medo? Para manter o exemplo extremo do início deste texto, desconheço relato de bandidos sentados no divã de um psicanalista ao longo dos anos que amargaram na prisão.
É natural, portanto, que haja dúvidas quanto à sinceridade de alguns “cristãos novos”. Só muito tempo para dar alguma garantia nesse sentido. E, em se tratando de seres humanos, surpresas são sempre possíveis – para o bem e para o mal.
Pois bem: suponha-se que a conversão se deu de fato, foi sincera e teve nobres motivações. Isso basta para que o autor de atos de extrema perversidade tenha o direito moral de pregar paz e amor? O arrependimento seria suficiente para que ele se tornasse um exemplo a outros, inclusive àqueles que nunca cometeram crimes e, sobretudo, àqueles que ele próprio prejudicou?
Minha resposta a essas questões tende a ser “não”. Na melhor das hipóteses, esse “pecador” arrependido serve de exemplo de como não agir. Parece-me cinismo enxergá-lo como um bom exemplo quando há melhores exemplos que ele à disposição. Que tal pessoas que nunca cometeram nenhum tipo de atrocidade?… Que tal vítimas de criminosos que resistiram à vingança, mesmo quando tinham a chance de praticá-la?
Ademais, por motivos já expostos, como se pode crer na palavra de um “fiel” recente? O que o motiva? Não se sabe ao certo. Não se pode sabê-lo. Por mais benevolentes que sejam, vítimas de crimes não têm o dever de aceitar em seu meio, muito menos em posição moralmente superior, os mesmos autores dos crimes de que foram vítimas. Seria pedir-lhes demais.
Tudo isso parece óbvio à maioria, eu sei. Mas o exemplo em questão é extremo. Adote-se exemplo mais trivial, e tudo fica mais complexo. Que não se trate, então, de um criminoso, mas de um colega mentiroso ou de um marido que traia sistematicamente a esposa (e ela sofra com isso) ou de tantas outras situações em que se contrarie o padrão ético adotado! Não parece difícil aceitar a súbita conversão religiosa de um transgressor?
Uma ressalva: longe de mim condenar o trabalho de igrejas que acolhem ex-criminosos e “pecadores”em geral! Elas realizam um trabalho socialmente útil. Melhor ex-bandidos nas igrejas que nas ruas, prontos a cometer novos crimes. Só me incomoda o outro extremo: a conversão de corruptos em bem-aventurados pregadores da paz.
Às vezes, tenho a impressão de que alguns cristãos seguem um “Deus da Borracha”. Essa divindade perdoaria e faria esquecer todos os erros daqueles que a venerassem. Assim, num passe de mágica, bandidos virariam protetores da lei; mentirosos, defensores da verdade; promíscuos, pudicos, e por aí afora.
Curiosamente, esse Deus da Borracha não teria o mesmo poder para fazer voltar a andar a vítima da bala de um criminoso, nem para ressuscitar o filho de um pai desolado, tampouco para livrar do trauma uma jovem que sofreu violência sexual, nem um filho de pais violentos. O Deus da Borracha não apaga certas dores e certas seqüelas. Ele só liberta quem as provoca. Mas quem disse que o mundo é justo?…