O politicamente correto (PC) desperta raios e amores. Conheço pouca gente que o vê com indiferença ou, pelo menos, sobriedade. Um velho conhecido espinafra o politicamente correto sempre que pode. Zomba dele. Ridiculariza-o. Solidarizo-me com esse meu conhecido até certo ponto. Repito: até certo ponto.
Solidarizo-me com ele e com tantos outros que pensam como ele porque eu também às vezes me irrito com gente politicamente correta. Mas, antes de dar parcialmente razão a seus detratores, quero tentar ser justo com os adeptos do PC.
Vejo no politicamente correto (uma invenção, dizem, dos norte-americanos) uma iniciativa bem intencionada. Tentar banir da linguagem palavras e expressões de caráter preconceituoso e discriminatório é uma atitude legítima, que se baseia em uma noção de justiça social.
Em tese, essa linguagem politicamente correta deveria tanto traduzir quanto induzir comportamentos menos preconceituosos e discriminatórios (ou, em última instância, desprovidos de preconceito e discriminação). À primeira vista, parece-me algo razoável e desejável, para dizer o mínimo.
Por que, então, uma iniciativa como essa gera tanta polêmica, tanto incômodo e, às vezes, até mesmo o contrário do que pretende, ou seja, mais intolerância? Arrisco alguns palpites, sem qualquer pretensão científica.
Por mais bem intencionado que o PC possa ser (e penso que o é), ele traz em si uma contradição: no afã de libertar pessoas e grupos de preconceito e discriminação, ele tira de muitas outras o direito de se exprimir livremente (ainda que essa liberdade, claro, possa ter implicações negativas). Por isso, alguns o vêem como uma espécie de mordaça.
Por que pressupor (ignorando o benefício da dúvida e o princípio de presunção da inocência) que todas as pessoas dirão sempre “negrão”, “biba”, “manco” (ou coxo), “empregado” ou “empregada” em sentido pejorativo?
Compreendo que contextos históricos e ambientes culturais justifiquem a adoção dessa ou daquela linguagem, para que se evite a discriminação ou a ridicularização. Mas não seria um exagero querer impor — seja por meio de normas, seja por meio de constrangimento social — uma forma de linguagem a um sem-número de pessoas em um sem-número de situações?
Vou além: deve-se realmente ignorar o tom de voz, a expressão facial, o contexto e o lugar de fala e considerar somente a fala, o dito, a palavra, a expressão verbal? No Brasil, isso parece mais despropositado ainda quando se sabe que o tom de voz adocicado substitui amiúde a formalidade de um “por favor” ou de um “obrigado” (ainda que essas palavras continuem tendo espaço merecido no vocabulário dos bem educados).
A linguagem do PC pode dar conta do léxico, mas sobrevive à ironia, por exemplo? Posso aplicar todos os termos politicamente corretos do dicionário e, ainda assim, soar preconceituoso, discriminador e até cruel.
Outra contradição que observo em alguns dos que adotam o politicamente correto: sentem-se moralmente superiores aos demais. Mal disfarçam a empáfia quando corrigem quem diz algo que lhes parece inadequado. Curiosamente, coincide, às vezes, de serem os mesmos que protestam contra o certo e o errado na língua e acusam a gramática normativa de elitismo. O PC não seria, ele também, uma forma de elitismo e normatização? Ou ele nasceu e cresceu espontaneamente nas ruas?
Parece haver em alguns a vontade ou a necessidade de sobressair intelectualmente por meio da luta pela justiça social. Nessa luta, a arma eventualmente é o controle da linguagem. Até onde vai o real sentido de justiça e a simples vaidade não sei dizer. Em alguns casos, parece haver culpa também. Mas não me atrevo a sugerir aos radicais do PC alguns anos de divã. Seria perda de tempo. Parecem-me sempre seguros demais para ao menos cogitar essa hipótese.
Debater com um árduo defensor do politicamente correto assemelha-se a debater com um fanático religioso. Alguns ativistas socioambientais lembram-me certos evangélicos. Não há neles espaço algum para a dúvida. Contradizê-los pode ser visto como heresia. O PC, para alguns, é ato de fé, por mais impregnado que esteja de racionalidade.
O tempo todo, neste texto, preocupo-me em não generalizar. Emprego termos como “alguns”, “certos”, “parece”, “às vezes”, “talvez” etc. Tento relativizar porque realmente não penso que todos os adeptos do PC sejam extremistas. Muitos querem apenas evitar mal-entendidos, preconceitos, injustiças enfim. Não patrulham ninguém.
No que me diz respeito, adoto o PC como quem usa roupa social. Ele costuma ser útil e mesmo recomendável em diversas situações. Ao se dirigir a muita gente, por exemplo, não se pode prever a reação de cada um. E há termos que o próprio uso popular já baniu, tão ofensivo parece a todos.
No entanto, o bom senso permite que se utilizem alguns termos considerados politicamente incorretos em situações informais, junto a amigos, sem maldade embutida. Até porque um dos mais freqüentes recursos do humor é o preconceito. Sem a intenção de ofender, pode-se brincar até diante do próprio alvo da piada, e este mesmo às vezes se encarrega de fazer os outros rirem dele. Se há clima de confiança recíproca, isso costuma ocorrer, e ninguém processa ninguém.
Muitas vezes, o preconceito acaba ou se reduz no convívio ou mediante o exemplo. Um gesto de generosidade tem mais poder que uma norma de linguagem. Uma amizade sincera pode romper tabus. O amor inesperado pelo diferente (às vezes, até pelo oposto) derruba mais barreiras que um dicionário moralizante. O afeto possui mais força que sofisticadas racionalizações.
Em uma cultura como a brasileira, o PC pode ser tão ou mais repressor e opressor quanto aqueles que utilizam a linguagem que ele, PC, condena. Só mesmo o bom senso para romper com esse paradoxo. Na piscina, nada de smoking! À mesa, porém, roupas, garfo, faca, guardanapo e boca fechada ao mastigar. Por favor!
Luciano, seu texto me fez lembrar de uma matéria sobre Luciano Hulk na revista Alfa. O título, salvo engano, era algo como “O maior coxinha do Brasil” – uma ode à cultura de “Mauricinhos”, “Playboys” e gente “politicamente correta”… vou procurar pra colar aqui 😉