Aquém de Dexter, além de Rolando Boldrin.

Recebi de meu pai, por e-mail, arquivo de um vídeo do ator, cantor e apresentador Rolando Boldrin. Geralmente, ignoro esses arquivos porque me falta tempo e me sobra preguiça para abri-los. Não sei por que diabos resolvi assistir ao vídeo. Talvez o título tenha me incitado: “Um choque de indignação”. Vivo indignado com o que vejo por aí. Deve ter sido o irresistível apelo da identificação.

Rolando_Boldrin

Rolando Boldrin

Abri o arquivo e ouvi as palavras de Boldrin, na verdade um discurso de Rui Barbosa (1849-1923), que o artista declama em elevado tom de indignação. Devo admitir que concordei com muito do que ouvi, ainda que eu tenha cá minhas reservas a falas de caráter moralista. Depois, fiquei pensando e me lembrei do seriado “Dexter”. Mais adiante, explico o porquê dessa aparentemente estranha associação.

O discurso de Rui Barbosa, por mais válido que seja, restringe-se à esfera da retórica. Na voz de Boldrin, conteúdo e forma reforçam o sentimento geral de indignação diante de abusos de poder, corrupção, violência, impunidade. Ali está uma fala bem-intencionada, mas que não chega a ser propositiva, pelo menos não em termos objetivos.

Rui_Barbosa

O escritor Rui Barbosa (1849-1923).

Como a maioria dos discursos emocionados, o de Rui Barbosa soa vago e generalista. Falta-lhe apontar caminhos, propostas concretas. Está muitos passos atrás de uma ação política efetiva. Por exemplo: há corrupção, ela é prejudicial e inaceitável, mas e daí? O que fazer para combatê-la? Protestar nas ruas? Jogar tomate podre nos políticos apontados como corruptos? Boicotar eleições? Ocupar Wall Street? Eis onde entra “Dexter” em meu raciocínio.

Dexter

Dexter, o famoso personagem que dá nome ao seriado norte-americano, é um serial killer que só mata bandidos. Primeiramente, certifica-se de que sua vítima tem “ficha suja”. Só vai atrás de assassinos, ladrões, estupradores. Sequestra-os, ata-os, envolve-os em plástico, marca uma das faces deles com uma faca, guarda uma gota de sangue como troféu e tira-lhes a vida a punhaladas. Depois, em cortes de precisão cirúrgica, embala-os em sacos plásticos e lança-os ao mar. Curiosamente, o espectador vê tudo isso e, tal qual Dexter, não sente pena da vítima. Não raramente, torce pelo assassino. Gosta de vê-lo em ato de vingança, especialmente porque a Justiça falhou na punição dos criminosos.

“Dexter” tem algo de catártico. Purga emoções profundas, entre elas a revolta diante de crimes e, sobretudo, da impunidade desses crimes. Embora sua motivação não seja moral, pois ele apenas aprendeu com o pai a canalizar para criminosos seu incontrolável instinto assassino, Dexter representa o poder dos que não têm poder. Um simples perito de delegacia, armado de sangue frio, inteligência e lições de criminologia, enterra — ou melhor, afunda — bandidos de toda espécie. Dexter, portanto, vai além da indignação (talvez porque nem chegue a senti-la). Ele age.

Ainda que seja ficção, “Dexter” é um discurso mais duro que o de Rui Barbosa. Sua eloqüência está na quantidade de sangue que faz jorrar a cada episódio. É um sangue metafórico, evidentemente. É a hipérbole da vingança. No entanto, se o personagem Dexter vai além do discurso moralizante e age, a série “Dexter” também se restringe à retórica, nesse caso mais no âmbito da imagem que do texto (apesar de haver muitas falas em “Dexter”, nenhuma é tão contundente quanto o esquartejamento de bandidos).

“Dexter” não aponta caminhos, propostas, soluções viáveis para a criminalidade. Ninguém, em sã consciência, defenderia o terror. E Dexter nada mais é que um terrorista disfarçado de herói. Na verdade, não é um herói. Não sai pelas ruas para evitar crimes. Ele os pune para satisfazer sua sede de sangue. É uma espécie de vampiro. E, principalmente, o que ele faz não é factível fora da ficção. É, no máximo, com muito boa-vontade, verossímil. Assemelha-se ao real, mas não é real, nem poderia ser nas mesmas condições.

Minha viagem mental teve início com o vídeo de Rolando Boldrin e terminou com digressões sobre “Dexter”. Não por acaso. No fundo, acho que os dois discursos se parecem e, por isso, os associei. Ambos restringem-se à retórica, cada um a sua maneira. Em nenhum deles, encontra-se uma genuína proposta política.

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Movimento “Occupy Wall Street”, em Nova York.

Se Dexter (o personagem) fizesse justiça — não vingança — de maneira crível e factível, aí, sim, ele estaria passos adiante do discurso indignado de Rui Barbosa. Mas “Dexter” (o seriado) permanece preso ao discurso ficcional voltado para o entretenimento. Como Barbosa na voz de Boldrin, ele toca as cordas da emoção muito mais que as cordas do pensamento. E emoções, como se sabe, vêm e vão.

Acho que é disto que precisamos: mais razão, mais pensamento, mais debate e uma ação consciente, segura, perseverante. Discursos inflamados ou sangrentos, “choques de indignação”, quando levam à ação, costumam promover tremores, fogo e sangue. Não política. Não caminhos estáveis, seguros.

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