Perdi a pessoa que eu mais amava neste mundo. Um câncer devastador levou minha mãe no último domingo. Ainda tenho a sensação de que ela está no hospital ou na casa de minha irmã mais nova, à espera de minha chegada, para que eu também cuide dela. Minha mãe dizia que se sentia mais segura quando eu estava por perto. Gostava particularmente de que eu dormisse no hospital ou no quarto ao lado do dela, quando estávamos na minha irmã ou em minha casa. De fato, a doença dela instigou meu lado paternal, e eu era quase um filho superprotetor.

“Melancholy”, Edvard Munch, 1891/1893.
Na verdade, minha mãe sempre despertou em mim a vontade de protegê-la. Não porque ela fosse frágil, mas por ser ocasionalmente ingênua e, certamente, muito generosa, inclusive com quem eu julgava não merecer sua generosidade. Eu tentava, às vezes com êxito, às vezes não, impedir que pessoas a explorassem ou a enganassem ou mesmo a maltratassem. Com ela já idosa, tornei-me ainda mais rigoroso nessa vigilância. Cheguei a comprar brigas por causa dela e confesso não me arrepender disso porque, em alguns casos, o respeito que tinham por ela se devia, em parte, ao temor que tinham de mim.
Felizmente, mamãe era tão querida que podia, eventualmente, prescindir de minha proteção. O jeito singelo de ser, que despertava o filho cuidadoso em mim, era o que na verdade conquistava simpatia para minha mãe. Estava ali uma pessoa quase completamente despida de poder. Daí a atrair espertalhões, era só um pulinho. Mas lá estava eu para impedir ou pelo menos inibir a ação dessas pessoas. Digo isso não somente porque essa era, de fato, minha postura, mas porque era eu o filho mais próximo fisicamente de minha mãe. Morávamos a menos de 1 quilômetro um do outro. Sem contar que minha irmã mais velha passa mais anos no exterior do que no Brasil. Outra também se mudou do país. A terceira mora em uma cidade vizinha, a aproximadamente 200 quilômetros de Brasília.

“Família Campestre”, Eugenio Zampighi, século 19.
É estranho pensar que sepultei minha mãe. Eu olhava para o corpo dela no féretro, e aquela presença me confundia. Se aquele corpo inerte não era mais ela, quem seria ela? Onde estaria a alma que tanta vida dera àquele corpo? Se ainda vive, por que se mantém invisível? Tenho lembranças remotas e recentes de minha mãe, e elas também se mesclam na minha cabeça, e fico ainda mais confuso. Não sei em qual imagem me apegar. Porque, afinal, quero sempre me lembrar dela de alguma forma, só que não como alguém que deixou de viver.
Parece inacreditável tudo isso. Não! Minha mãe não morreu. Está na casa dela aqui perto da minha. Vou almoçar com ela amanhã. Ela vai preparar um almoço delicioso, temperado com muito amor, e vou comer três pratadas e deixá-la orgulhosa. Não! Ela está na casa de minha irmã mais nova, sob cuidados extremos, numa cama hospitalar, sofrendo pela perda gradual dos movimentos, mas ainda lúcida e disposta a demonstrar seu afeto, e eu lá, repetindo sempre: “Estou aqui, não vou deixar você, vou ficar muitos dias do seu lado”. Não! Ela está no hospital, e sou eu que vou passar a noite na cama ao lado da dela, e ela vai acordar várias vezes à noite, e eu vou pedir ajuda de uma enfermeira para trocá-la, ajeitá-la no leito ou aplicar-lhe morfina para aliviar a dor. Não! Ela está em minha casa em Brasília, no frio de julho, e eu a cubro de edredons, mantas e abraços. Ela, que não gostava de muito “grude”, no fundo sentia-se bem com meus carinhos. Ao longo da madrugada, ela acordava para ir ao banheiro e, antes que se levantasse da cama, lá estava eu à porta do quarto, pronto para acompanhá-la, e ela logo indagava, surpresa: “Você não dorme, não?”. Ficava ao mesmo tempo impressionada e satisfeita com minha rapidez: “Mal toco os chinelos, e você já está aqui!”.

“A Mulher Enferma”, Vasily Polenov, c. 1886.
Vi minha mãe gritar e chorar de dor. Vi minha mãe esforçar-se para estender os braços, tocar meu rosto e acariciá-lo com as duas mãos. Vi minha mãe nervosa, angustiada, inquieta porque sentia que não estava melhorando. Vi minha mãe irritada e impaciente quando tomou doses erradas de um medicamento e a vi novamente afável e generosa quando interrompeu o uso dessa medicação. Vi minha mãe sorrir de alegria ao rever os netos. Vi minha mãe comer açaí como uma criança se delicia com um sorvete. Vi minha mãe ter toda a liberdade do mundo para me pedir algo que ela queria, e eu ter a imensa alegria de poder lhe proporcionar tudo o que ela quisesse. Vi minha mãe cair. Vi minha mãe dormir, enquanto eu a cobria para que não sentisse o frio da madrugada. Ouvi minha mãe se despedir de mim com os olhos marejados de afeto.
Se você tem mãe e gosta dela, não poupe carinho, tempo, presença, dinheiro. Dê a ela o máximo de si. Quando ela se for — se ela partir antes… — você ainda sentirá que fez pouco, mas terá a consciência tranquila, como eu tenho, de que fez o que estava a seu alcance para demonstrar seu amor por ela e fazê-la mais feliz. Nos últimos meses, sobretudo, me despi de todos os fúteis acessórios de minha personalidade para me dedicar quase integralmente a minha mãe. Orgulho, vaidade, medo, preconceito, trauma, tudo foi pelos ares. Graças a Deus! Não me arrependo nem um segundo do que fiz e, se o tempo voltasse, mais eu faria, muito mais, muito mais mesmo.
Se você tem mãe, e ela visivelmente gosta de você, como a acachapante maioria das mães, invista em sua relação com ela. Nunca me arrependi de ter em minha mãe minha melhor amiga. Nunca me arrependi de um dia tê-la aceitado como era e valorizado suas qualidades, quase ignorando seus defeitos. Talvez você não tenha tido a sorte que tive de ter uma mulher fantástica como mãe. Isso acontece. Há mães mais e menos generosas, mais e menos dedicadas, mais e menos gentis, mais e menos compreensivas, mais e menos instruídas, e por aí vai. Tudo bem. O importante é que, mesmo diante das limitações de sua mãe, única e insubstituível, você consiga transmitir a ela seu amor, um amor que você já sente e, às vezes, só precisa demostrar — ou demonstrar mais. Não espere que a doença ou a morte lhe dê coragem para expressar seus melhores sentimentos por sua mãe. Confesso, outra vez, que eu teria demonstrado muitíssimo mais meu amor por ela se eu soubesse que a perderia tão cedo — pois eu acreditava firmemente que ela chegaria aos 90, como minha avó, mãe dela, chegara.

“Mãe e Filho”, Alice Schille, c. 1910/15.
Quando se é jovem, pai e mãe parecem eternos. Quando a juventude se vai, acende-se um sinal de alerta, mais relacionado ao receio de que eles fiquem doentes. Quando se avança na fase adulta, e os pais já estão lutando contra as doenças que você temia que eles tivessem poucos anos atrás, a morte os espreita, mas aí você faz de conta que não a percebe. Eis que ela chega, de uma vez ou de mansinho, e carrega quem um dia ninou você. Seu mundo desaba. Pode acreditar.
Sepultei minha mãezinha na última segunda-feira. Ainda me sinto confuso e um pouco atordoado. Pensava que fosse enlouquecer quando isso acontecesse, mas estou aqui, diante deste teclado, firme na medida do possível. Ora me emociono, ora me fecho, ora me distraio. Seja como for, sei que minha mãe está comigo o tempo todo, em minha memória, em minha saudade. Para suportar sua falta pelo resto de minha existência, preciso desesperadamente acreditar que vou reencontrá-la um dia. Caso contrário, sem essa esperança, aí, sim, posso vir a enlouquecer. Por enquanto, sigo firme, na medida do possível. Na medida do possível.
Texto perfeito e emocionante!
Tudo exatamente assim…
Como ela deixa saudades.
Lindo e verdadeiro depoimento de um FILHO!
Assim como existem muitos “tipos “ de mãe , tem – se muitos tipos de filho!!!
E a tia teve ao lado dela , VC , um filho querido, dedicado e amável …
Força nesse nova etapa onde a distância física impera …
A ligação nunca será cortada ….
Beijo no seu coração!
Texto emocionante.
Dilza, está viva em nossas mentes e no plano espiritual!!
Uma grande pessoa! Sensacional!! Maezona!!