Escrever para quê?

Muitas vezes, indago a mim mesmo: para que escrever? Vou além: para que há tantos escritores no mundo atual? Já há livros suficientes no planeta para quem quiser passar o resto da vida lendo, mesmo que seja uma criança que tenha acabado de aprender a ler. Por que dedicar horas a um autor contemporâneo quando há tantos clássicos na estante?

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Se ninguém mais produzisse uma linha de literatura (para me restringir a uma única área da produção de livros), haveria suficientes obras para enriquecer intelectualmente uma pessoa por mais de 100 anos.

Abro uma exceção para as obras de ciências humanas, sociais e exatas/tecnológicas contemporâneas, pois geralmente tratam de temas que interessam à atualidade. Em outras palavras, trazem novidades úteis à melhor compreensão e posicionamento no mundo de hoje, seja mental, seja físico, seja natural etc. São, portanto, indispensáveis.

Numerosas obras de opinião, porém, chegam a ser inúteis, pois simplesmente repetem, sintetizam, simplificam ou reduzem (ou tudo isso simultaneamente!) reflexões que filósofos já fizeram com mais competência e seriedade, às vezes séculos antes. Bastaria ao leitor bem informado ir diretamente às fontes originais.

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Outras tantas obras de ficção atuais também caem no pastiche. São meras variações sobre os mesmos temas, geralmente com muito menos talento literário. E há narrativas que apelam para o excesso de formalismo, para recursos extravagantes, como se eles tivessem valor em si mesmos, e a história não tivesse importância, pois nada tem a dizer.

Antes de prosseguir, quero deixar claro que acho legítima qualquer forma de expressão, desde que não tenha intenções opressoras, dominadoras, constrangedoras. Longe de mim desdenhar quem publica opinião ou romance hoje em dia! Não estou eu mesmo opinando aqui neste blog?

Há uma realidade presente que merece retratos, análises, interpretações, seja em prosa, seja em verso, seja em canto, seja em dança, seja como for. No caso do texto, ele tem o poder (e até o dever) de contribuir para formar opinião sobre o que se passa na contemporaneidade. Ainda assim…

Dante Alighieri: "A Divina Comédia".

Dante Alighieri: “A Divina Comédia”.

Ainda assim, fico me perguntando se não há excesso de produção textual no mundo. Exceto pelo aspecto da segmentação (publicações voltadas para públicos e áreas específicos), questiono, por exemplo: por que devo ler a última obra de, sei lá, Cristóvão Tezza, se ainda não li “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri? Não deveria dedicar meu escasso tempo a ler os clássicos ao invés dos contemporâneos, que, não fossem os clássicos, talvez não chegassem a ser escritores?

Realmente, não sei… Essas são dúvidas que lanço aqui na esperança de gente mais inteligente e letrada que eu possa me ajudar a tirar da cabeça. Afinal, admito, desconfio de minhas próprias dúvidas.

Algo me diz que estou enganado. Intuo que as reflexões contemporâneas contribuem para o entendimento do mundo de hoje assim como as narrativas atuais refletem o presente (como sempre foi ao longo da história da literatura, com a exceção relativa dos romances históricos). Não posso nem devo me prender apenas ao passado, aos ancestrais, aos fundadores da cultura (essa palavra tão complexa…).

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Eis onde entra o fator tempo. Se trabalho em média 8 horas por dia de segunda a sexta-feira e folgo aos sábados e domingos, quando também preciso descansar a mente e desejo assistir a filmes, reunir-me com amigos, jogar conversa fora, enfim, divertir-me, distrair-me, quanto tempo me sobra para ler? Nas férias? Ainda que consiga tirar 30 dias seguidos, vale para elas o mesmo raciocínio dos fins de semana (sem mencionas as viagens…).

Nesse pequeno tempo restante — ainda que no trabalho seja possível, por exemplo, parar alguns minutos para ler as notícias ou consultar o Twitter e o Facebook — por que devo optar por José Saramago em vez de Oscar Wilde? Por que devo escolher Frank Wallace e não Aristóteles ou Kant ou Hegel?

Quando cursava Filosofia, e algum professor dos primeiros semestres pedia a leitura de um filósofo contemporâneo, aquilo me inquietava porque o texto geralmente remetia a clássicos que eu ainda não havia lido. Portanto, era como se eu começasse a ver um filme depois da metade. Sem as bases, os fundamentos dos clássicos, como eu poderia compreender realmente a reflexão dos contemporâneos?

Immanuel Kant (1724-1804).

Immanuel Kant (1724-1804).

Daí, às vezes, vir-me à cabeça a idéia maluca de ninguém publicar mais nada. Já há excesso de informação no mundo. Os escritores de hoje, que por certo não tiveram tempo de ler todos os clássicos, de todas as línguas, parariam imediatamente de publicar. Leriam somente. A humanidade só voltaria a ter novos livros (físicos ou virtuais) quando tivesse esgotado a leitura do estoque hoje disponível.

Claro que digo isso de maneira caricata, mas expresso, de fato, uma angústia diante da quantidade incomensurável de obras que me parecem indispensáveis, as quais jamais terei tempo de ler. Sinto-me sufocado — e frustrado, claro — diante de tantas opções.

Um dia, fiz o exercício de contar quantos livros tenho em minha casa (na conta, não entraram os virtuais, disponíveis no iPad). A conclusão foi dura: mesmo que eu viva 100 anos, não conseguirei tempo para lê-los todos. Muitos ficarão para sempre na estante — ou só sairão de lá para ocupar outra prateleira, seja de outra casa, seja de uma biblioteca.

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Admiro quem está em dia com a literatura, mas pago um doce para quem trabalha full time e leu tudo o que a maioria dos especialistas considera indispensável para uma formação intelectual respeitável. É preciso escolher, e escolher é renunciar.

Olho para meus livros — tanto os de ficção quanto os de não-ficção — e me bate aquela vontade de ganhar na Megasena e passar o resto de meus dias de “licença sabática”, lendo o máximo que eu puder, até ficar idoso! Ainda assim, lamento, terá sido pouco, muito pouco tempo, perto do que há neste mundo, vasto mundo, para ler. Parem as máquinas!

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3 respostas para Escrever para quê?

  1. Dilza Simas Milhomem disse:

    Só para resumir. ..Hoje eu amanheci pensando, se não houvesse passado não haveria presente porque faltaria bagagem para preenche_lo. Sempre que eu leio autores contemporâneos eu quero buscar a fonte e se posso eu vou beber nela. Seu blog acrescentou algo mais. ..Grata.

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